Origem da plavra Caipira

Baseado na Grande Reportagem “Os Rumos da Música Caipira no Vale do Paraíba”, de Anderson Borba Ciola e Fábio Cecílio Alba, a origem da palavra caipira ainda é motivo de controvérsias. Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luiz Câmara Cascudo, a palavra significa “homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. Habitante do interior, tímido e desajeitado...”. Robert W. Shirley, em seu livro “O fim de uma tradição”, critica a posição de Câmara Cascudo, dizendo que: “Esta definição em si mesma, revela a extensão da grande lacuna social entre os escritores urbanos e os camponeses, pois, de fato, o caipira tem uma cultura distintiva e elaborada, rica em seus próprios valores, organizações e tradições”. Já no Dicionário Aurélio é encontrada a seguinte definição: “Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos”. Cornélio Pires, jornalista e violeiro, em seu livro “Conversas ao pé do fogo” define a palavra caipira da seguinte forma: “Por mais que rebusque o étimo de caipira, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi-guarani capiâbiguâara. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto, neste caso temos a raiz ‘caí’, que quer dizer gesto de macaco ocultando o rosto. Capipiara, que quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do mato, faz lembrar o capiau mineiro. Caapiára quer dizer lavrador e o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último o mais aceitável, pois caipira quer dizer roceiro, isto é, lavrador...”.

19.7.11

ROMILDO SANT’ANNA

física, e doendo, doendo... Por isto é popular, para os patronos do povo. Mas o povo cria, mas o povo engenha, mas o povo cavila. O povo é o inventalínguas na malícia da mestria, no matreiro da maravilha, no visgo do impro- viso, tenteando a travessia... O povo é o melhor artífice.13
13Isto não é um Livro de Viagem: 16 Fragmentos de Galáxias: “Circuladô de Fulô”,
de Haroldo de Campos. CD. Ed. 34, Rio de Janeiro: 1992.
14Apud. GARCÍA DE ENTERRÍA, Maria Cruz. Romancero Viejo, p. 51.
15SPITZER, Leo.Estilo y Estructura en la Literatura Española, p. 145.
Ilustração n.1– Capa do Cancionero de Romances
de Martín Nucio (sem data).14

É num parâmetro similar a este que se enquadram as manifesta- ções da Moda Caipira de raízes, seus escritores de músicas e cantadores. De origem peninsular, nela se encontram resíduos for- mais, decalques e vestígios de motivos estilísticos e temáticos do Romanceiro tradicional ibérico, “essaIlíada espanhola sem Homero” – como escreveu Spitzer15 –, que se espalhou pelas letras românicas e quatro ventos da Europa. Confabulando com motivos literários antigos que incursionam pelo mundo medieval, a Moda Caipira de raízes remoça metáforas e instâncias temáticas profundamente agregadas na cultura, como a tópica exordial, a do final feliz, a da invocação da natureza, do lugar ameno e bucólico, a da peroração, a
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das invocações bíblicas, a do passado feliz que não volta mais, a da moça roubada, a do homem mal, de coração satânico, a da rapariga pecadora, a do mundo às avessas, a da morte domada, a do pobre virtuoso, a das transformações zoomórficas, assombradoras ou angelicais, a da força das premonições e vaticínios, todas muito freqüentes e determinantes de núcleos temáticos e enredos nas can- ções de gesta e no Romanceiro tradicional. Neste sentido, trata-se de umac r i o u l i z a ç ã o da literatura escrita. Disto se explica porque, ao aproximar-se de nossa época, agregam-se na Moda Caipira tantas vibrações da estética romântica, esta que, em muitos aspectos, se configura pelo apreço ao medieval. É oportuno lembrar que os padrões formais consolidados em poesia e que se expressam no etnotexto ibérico funcionam como faróis a abrir caminho para as variações conformes à vicissitude vital do mundo hispano-america- no. Se fosse diferente, e se no Novo Mundo se reproduzissem os mesmos padrões, a estrutura poemática seriaf ó r mu l a e nãof o r ma. E assim se explica por que a redondilha, tão freqüente na Moda Caipi- ra de raízes (e outras manifestações brasileiras), embora tão parecida com o modelo antepassado ibérico, é peculiar em suas relações har- mônicas, principalmente rítmicas. Existe uma poética da oralidade, da qual a literatura tipográfica se desviou, formando seus cânones e meios. Porém não raro acontece que, quando a grande literatura quer respirar e restaurar a limpidez da origem, volta às fontes da oralidade. Então, é injusto afirmar que um poeta popular é “exce- lente” porque seu estilo se aproxima ao de um poeta erudito. Digo isto porque é comum encontrarmos o vezo em citar procedimentos estilísticos de um poeta “aceito classicamente” como abonadores e justificadores de artimanhas estéticas freqüentes na poesia de tradi- ção oral. Na Moda Caipira ressoam e sobrevivem as canções lauda- tórias e heróicas que são fontes das canções épicas, aristocráticas;16
16Arnold Hauser escreve que “a ‘épica popular’ da história literária do roman-

ce não teve, originalmente, relação alguma com o povo. As canções laudató- rias e oslieds heróicos, que são a fonte das canções épicas, eram da mais pura qualidade poética que uma classe dominante jamais produziu. Não eram nem criadas, nem cantadas, nem difundidas pelo ‘povo’, nem intencionalmente destinadas ou musicadas para a mentalidade do povo. Eram estruturalmente poesia artística e de uma arte aristocrática”. (História Social da Literatura e da Arte - I, p. 228).
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ROMILDO SANT’ANNA
assim, o historicismo ainda que idealizado ou legendário doCantar
del Mio Cid (Rodrigo Díaz de Vivar, chamado Cid pelos mouros e
Campeador pelos cristãos), supostamente escrito em 1140, e outras

gestas dosjuglares, as letras moçárabes do século XI, de tradição oral e cantadas, as cantigas paralelísticas galego-portuguesas cultas (can- tigas de amor) e populares (cantigas de amigo), tremulam como bases de grandes escritores peninsulares, brasileiros e hispano-ame- ricanos. Entre eles se evidenciam Garcilaso de la Vega, Frei Luís de León, Lope de Vega. As primitivas gestas castelhanas e o Romanceiro tradicional tiveram seu esplendor no teatro doSiglo de Oro –, Gil Vicente (com vários autos explicitamente romanceados); Sá de Miranda, Camões, Góngora, Gregório de Matos, Quevedo, pas- sando pelo fundador do romantismo espanhol Duque de Rivas (Romances Históricos, 1841), além de José de Espronceda e o portu- guês Almeida Garret (Camões, 1825,D. Br a n c a, 1826, eAd oz i nd a, 1828, de sua fase romântica, mais tarde incorporados aoRomanceiro
e Cancioneiro Geral, 3 vols. – 1843-1851. São também de Garret os

chamados “romances reconstruídos, realizados de paráfrases e fantasi- as poéticas sobre os romances e outras expressões de tradição oral). É preciso citar Gonçalves Dias (Sextilhas de Frei Antão, 1848), Casimiro de Abreu (vários poemas dePrimaveras, 1859, um deles, romancea- do, tendo como tema a própria viola: “queixume do mar que rola/ cantiga em noite de lua/ cantada ao som da viola). Entre os mais recentes, figuram o argentinogauchesco José Hernández (Martín
Fierro, 1872), o modernista cubano José Martí (Versos Sencillos, 1891),
o argentino Enrique Banchs (Elogío de una Lluvia, 1908), os espa-
nhóis E. López Alarcón (com a peça Gerineldo, Poema de Amor y
Caballería Compuesto en Parte con Pasajes del Romancero, 1909), Jacinto

Grau (El Conde de Alascos, Tragédia Romanesca, 1917) e Gerardo Diego (Romance de la Novia, 1918), García Lorca (Romancero Gitano, 1924-27, e tragédias andaluzas), Salvador de Madariaga (Romances de Ciego, 1922), Miguel de Unamuno (Romancero del Destierro, 1928) e Anto- nio Machado, da geração espanhola de 98, o modernista argentino Leopoldo Lugones (Romancero, 1924), Cecília Meireles (Romanceiro
da Inconfidência, 1953), Ariano Suassuna (Auto da Compadecida, 1955),

João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina, 1954-55, e outros poemas em voz alta), Ferreira Gullar (Romances de Cordel, 1962-67) e tantos outros.
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A respeito das reevocações temáticas e da apropriação pelo poeta popular de obras literárias consagradas pelo gosto geral, modifican- do-as ou trazendo para o primeiro plano episódios mais impactantes, há que sublinhar que era comum esses excertos serem desgarrados das antigas gestas épicas medievais e transformados em formas poemáticas designadas por romances. Vale lembrar que os Romances tradicionais eram textos musicais-recitativos realizados para uma só voz, geralmente, com acompanhamento instrumental – principal- mente avihuela [viola] de mano –, de maneira a se evitar que a relevância enfática do enredo não se diluísse nos artifícios melódicos e nuanças da prosódia musical. Eles se caracterizam então, genericamente, como episódios baladísticos derivados das extensas epopéias medievais. Com o passar do tempo, observa Pedro M. Piñero e Virtudes Atero, “os novos gostos facilitariam a que, independentes já das gestas me- dievais, nascessem outros romances de assuntos históricos e nove- lescos, relacionados a acontecimentos coetâneos, ao mesmo tempo que receberiam influências de outras fontes poéticas, como, principal- mente, das baladas européias com as quais tanto têm em comum e que asseguram ao romanceiro uma modalidade lírica e contribuíram para fixar determinadas formas métricas”.17Em certa altura da Idade Média, a palavraromance (rimance ou romanço) designava o linguajar do povo. Nessa época ainda não havia caracterização definida entre Lín- gua Portuguesa e Língua Espanhola. De relance, gostaria de acrescen- tar que os autos do artista-apóstolo Padre Anchieta (Auto da Festa de
São Lourenço por exemplo), escritos já no século XVI, na capitania de

São Vicente para serem representados pelos indígenas, foram escritos numa mistura de línguas portuguesa, tupi-guarani e espanhola, a chamada “língua brasílica”. Essa era a língua geral dos índios e dos lusitanos indianizados. Pode-se afirmar, pois, que o teatro no Brasil nascia apoiado numa espécie de “romance brasileiro”.
O vocábuloromance provém do advérbio medieval latino romanice
(romanice loqui – falar em língua românica), em contraste comlatine
loqui(falar em latim), a língua das camadas nobres e clericais. Este

sentido se confunde com a forma poemática predileta, primeiramen- te dos círculos aristocráticos, e após, dos estratos populares. Por vias latinas e pela mestiçagem lingüística dos romanços, a poesia popular
17ATERO, Virtudes e PIÑERO, Pedro M. Romancer o de la Tradición Moder na, p. 12.
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herda a seiva da antigüidade clássica. O Romance Tradicional recebe essa nomenclatura pelo fato de ser uma obra lírico-narrativa trans- posta para o idioma local, o romanço. Luís da Câmara Cascudo ob- servara confirmações disto e anota que no final do romance de Calila
e Dimna lê-se: “aqui se acaba el libro de Calila e Dimna, et fue sacado

del arávigo en latin erromançado por mandado del infant don Alfon, fijo del muy nobre rrey don Fernando, en la era de mill e dozientos e noventa e nueve años”, que significa que foi traduzido er omançado, do latim (versão do árabe) para or omanço ibérico. Nicolas de Piamonte, abrindo sua tradução de Carlos Magno, em 1525, explicava: “...yo Nicolas de Piamonte propongo de trasladar la dicha escriptura de lenguaje frances enromance castellano, sin discrepar, ni anadir, ni quitar cosa alguma de la escriptura francesa”.18 Neste ponto é profícuo aduzir – informam os pesquisadores – que em nenhum documento anterior ao século XV se encontra empregada a palavraromance ou romanço como designação do gênero poemático. A primeira vez, relata Menéndez Pidal, aparece no Proemio do Marquês de Santillana (esta- dista López de Mendoza, 1398-1458), publicado em língua români- ca, e não em latim, em versos geralmente octossílabos,19 freqüentemente com rimas assonantes nas linhas pares. Assim consi- derado, à parte a admirável fortuna de saberes e as minuciosas refe- rências e estudos como os contidos no Romancero Hispánico (Hispano-
Portugués, Americano y Sefardí), tomos I e II, o mestre Menéndez Pidal

define oromance com extrema concisão: “poemas épicos-líricos bre- ves que são cantados ao som de um instrumento, seja em festas dançantes, seja em reuniões ensejadas para o recreio simplesmente, ou para o trabalho comum”.20
O romance preferido dos músicos, historiam vários autores, era
El Conde Claros,história cavalheiresca de Claros de Montalbán, plena
de paixões e excitações pelo tumulto da vida, com seus 420
octossílabos, muito difíceis de serem cantados na seqüência integral.
18Apud. CASCUDO, Luís da Câmara Literatura Oral no Brasil, p. 213.
19 De acordo com o padrão grave da metrificação espanhola, mais adequado ao

espírito paroxitonal da Língua Portuguesa. Este padrão é o adotado pelo Grupo de Estudos “Literatura e Cultura Popular”, sediado na UNESP de São José do Rio Preto-SP. As avaliações estilísticas contidas neste Ensaio terão pressupostos esse padrão métrico.
20MENÉNDEZ PIDAL, R. Flor Nueva de Romances Viejos, p. 7.
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Cito um trecho desse romance antigo e atentemos para o intrincado jogo semântico e sua musicalidade. Arbitrariamente – os romances antigos não eram estrofados –, vamos dispor os octossílabos em dois blocos estróficos (dois sextetos), para que se possa perceber com mais facilidade o caráter funcional do desenvolvimento cíclico de uni- dades narrativas, culminando pela cadência das pausas, e sua eficácia poemática comoletra de música, a propiciar voltas repetitivas da mes- ma melodia.
EL CONDE CLAROS

Las hijas del rey chiquito Todas andan a un igual, Todas visten un vestir,
Todas calzan un calzar,
Todas dicen a una voz:
La infanta preñada está.
–Si la infanta está preñada
Caso es que parirá.
Vino tiempo y pasó tiempo,
Que la sacan a quemar,
Con quince carros de leña
Y más que van a buscar.21
***

Osvihueleros ouvihuelistas, como eram conhecidos na Península Ibérica, e que ficaram sendo os nossos violeiros, preferiam executar apenas os trechos prediletos, ou preferidos de seus ouvintes, de um romance lírico-narrativo de larga extensão. Acrescente-se ainda que, se até o século XV era manifestação puramente oral, há que mencionar, segundo Menéndez Pidal que, de todos os gêneros poéticos penin- sulares, o romanceiro foi o que mais ocupou as tipografias do século XVI, em forma depliegos sueltos, análogos aos folhetos de cordel (colportage, na França,chapbook, na Inglaterra,folhetos volantes ou c ordel, em Portugal) tão queridos no Nordeste brasileiro. A partir daquele período, entraram na moda também na forma escrita, não como coletânea ou antologia reunida como preservação dos haveres cultu-
21 Apud. COSSIO, José Maria de. Romances de Tradición Oral, p. 43-4.

OMILDO SANT’ANNA
rais e artísticos, mas para fins de consumo de massa, para o deleite
requerido pelas gentes.

Para elucidação da projeção temática e dos códices do Romanceiro tradicional, pela transmissão oral, tão em voga nos séculos XIV e XV, nos romanceiros modernos orais e escritos, baladas e nossas Modas Caipiras, é necessário citar quatro dos principais e mais comovedores conteúdos do Romanceiro, de acordo com a classificação bem simplificada e didática de Guillermo Díaz-Plaja, à qual complementamos com observações de Dámaso Alonso:22

a)Romances que fazem referência à história antiga. – São episódios tirados da Bíblia ou dos historiadores gregos e romanos. Existem, por exemplo, romances sobre o “Sacrifício de Isaac”, “O Pecado Ori- ginal”, “O Nascimento de Moisés”, sobre a Samaritana; sobre o in- cêndio de Roma; sobre a tomada de Numancia, etc.

b)Romances que fazem referência à história peninsular. – São os mais importantes. Seus heróis são o rei Don Rodrigo, o Cid Campeador, Bernardo del Carpio, o Conde Fernán Gonzales, os Sete Infantes de Lara, Ximena pedindo justiça, Don Sancho e Doña Urraca. São notá- veis os romances fronteiriços da guerra de Granada, e os do ciclo de Don Pedro,el Cruel, assim chamado por envenenar a esposa, Dona Blanca de Borbón. Cada romance se define por um tema concreto, abarcando quase toda a história medieval peninsular e de parte da Europa, comoExpulsión de los Judíos de Portugal. Incluem-se nesta categoria aqueles que constituem verdadeiros ciclos, como a fábula de Don Rodrigo e a perdição da Espanha – de seu pecado à sua penitên- cia e morte, formando em conjunto uma espécie de unidade poemática. Sobre esses enredos, existiram antigos cantares de gesta; deles, como foi mencionado, os romances aproveitaram elementos que pareciam de maior interesse e emoção.
Por sua riqueza descritiva, certamente carregada de intensidade
dramática, vale a pena citar o seguinte trecho de um romance velho:
De cómo el rey Don Rodrigo perdió a España, transcrito na forma de dois
hemistíquios octossílabos, assonantados os versos pares, conforme
aparece em várias coleções:
22DÍAZ-PLAJA, Guilher mo. Historia de la Literatura Española, p. 73-8; AL ONSO,
Dámaso.Cancionero y Romancero Español, p. 9-19, e MENÉZEZ PIDAL, R.Los
Romances de América y otros Estudios.
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Las huestes de don Rodrigo — desmayaban y huían cuando en la octava batalla — sus enemigos vencían. Rodrigo deja sus tiendas — y del real se salía;
solo va el desventurado, — que no lleva compañía.
El caballo de cansado — ya mudar no se podía,
camina por donde quiere, — que no le estorba la vía.
El rey va tan desmayado, — que sentido no tenía,
iba tan tinto de sangre, — que una brasa parecía.

c)Romances de tema francês. – Carlos Magno, o rei dos francos e Imperador do Ocidente no século VIII, e seus cavaleiros são muito citados. Incluem-se imitações da Chanson de Roland (conhecido desde antes do ano de 1080)23 , em que o Imperador descobre, desolado, os cadáveres de Roldão, Oliveiros e Turpim. Pertencem ao ciclocar olíngio e dele fazem parte romances notáveis como El Sueño de Doña Alda, El
Conde Claros y el Emperador, Nacimiento de Montesinos, Miliselda y Don
Gaifero, Roncesvalles...; fazem parte também dessa classificação os he-
róis do ciclobr etão, especialmente figuras heróicas como Lançarote.

d)Romances lírico-narrativos. – Incluem-se nessa classificação uma série de romances que narram histórias de amores e de intrigas – Bernal Francês, a BelaMalmaridada (um dos enredos preferidos dos
vihuelistas, juntamente com La Mañana de San Joan), Branca-flor... –

ou aqueles em que ojuglar (cantador) canta seus amores e desenga- nos. Os romances de enredos novelescos e líricos são, em geral, carre- gados de imagens de ponderável intensidade lírica, como a história de Amadís, o mais famosocaballero do século XVI, ou como o seguinte excerto, em que um navegante se vê glorificado pela sua profissão no mar:

Por Dios te ruego, marinero — dígasme ora ese cantar.
Respondióle el marinero, — tal respuesta le fue a dar:
–Yo no digo esa canción — sino a quien conmigo va.

Ou aquele, repleto de subentendidos e certa malícia, em que uma missa é interrompida pela entrada de uma bela mulher. Um jogo fonossemântico se instaura:
23LAATHS, Erwin.Historia de la Literatura Universal.
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El abad que dice la misa, — no la puede decir, non;
Monacillos que le ayudan, — no aciertan responder, non:
Por decir “Amén, amén”, — decían “Amor, amor”.
24Apud. GARCÍA DE ENTERRÍA, María Cruz. Romancero Viejo, p. 48
Ilustração n.2 – Romance de Amadís y Oriana,
umpliego suelto de cerca de 1515-1519.2 4
Não gostaria de deixar de citar os dísticos octossílabos de Con
Pavor Recordó el Moro, pela intensidade emotiva e artificiosidade
paralelística, assim como por sua construção à base de imagens irôni-
cas que se fizeram tão comuns no romantismo:
Con pavor recordó el moro — y empeçó de gritos dar:
Mis arreos son las armas, — mi descanso es pelear,
...........................................................................
Mi cama las dura peñas, — mi dormir siempre es velar
Mis vestidos son pesares — que no se pueden rasgar.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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E, pela perenidade “da maldita esposa infiel”, o seguinte trecho
de octossílabos assonantados:
LA ESPOSA INFIEL
Estaba una señorita
Sentadita en su balcón,
Pasó por allí un soldado
De muy mala condición
Y la dijo: –Senhorita,
Con usted durmiera yo.
–Suba, suba, caballero,
Dormirá una noche o dos,
Que mi marido fué a caza
A los montes de León,
Y para que acá no vuelva
Le echaremos maldición:
Cuervos le saquen los ojos,
Águilas el corazón,
Se caiga de un risco abajo
Y muera sin confesión.25

Variantes do Romanceiro tradicional se alastram por toda a Europa e América hispânica. A título de ilustração, convido o interlocutor para comparação de um romance antigo peninsular e sua variante ocorrente no Chile. Neles se configura o tema primor- dial da jovem sedutora que atrai um pastor, para tirá-lo de seu “paraíso”, num revivenciamento do mito seminal de Adão e Eva e o primeiro pecado:
LA GENTIL DAMA Y EL RÚSTICO PASTOR
Romance Tradicional
Estando un día un pastor — de amores muy descuidado,
Vino por allí una dama. — -Usted me da a mí cuidado.
Mira qué trenza de pelo — qué delgada de cintura.
25 Apud. COSSIO, José María de. Romances de Tradición Oral, p. 60.
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Si te casaras conmigo — gozaras de mi hermosura.
Respondió el bien del pastor: — -Tu hermosura no la quiero,

Tendo el ganado en la sierra — y quiero dirme con ello. –Pastor, que estás enseñado — a dormir en las cabañas, Si te casaras conmigo — durmieras en buena cama.
Pastor, que estás enseñado — a comer pan de centeno,
Si te casaras conmigo — comieras de pan y bueno.26
LA DAMA Y EL PASTOR
Romance Chileno
–Pastor que andas por la sierra — pastoriando tu ganado,
Si te casaras conmigo — salieras de esos cuidados.
–Yo no me caso contigo, — responde el villano vil,
El ganado está en la sierra, — adiós, que me quiero ir.
–Como estás acostumbrado — a andar con esas ojotas,
Si te casaras conmigo, — te pusieras buenas botas.
–Yo no me caso contigo — responde el villano vil,
El ganado está en la sierra, — adiós, que me quiero ir.
–Como estás acostumbrado — a comer galletas gruesas,
Si te casas conmigo — comieras pan de cerveza.27
* * *

Os quinhentistas portugueses são depositários da tradição oral- popular, a exemplo de Camões e Jorge Ferreira de Vasconcelos. Após certo arrefecimento, no período neoclássico, é no romantismo que se reabilita definitivamente o Romanceiro tradicional, projetando-o em direção ao século XX, ainda que em sua condição puramente escrita (os estudos sobre a relação palavra-música ainda estão por fazer). Entre as coletâneas portuguesas destacam-se desde Garrett (Romanceiro, 1843-50) às de Teófilo Braga (Floresta de Vários Romances, 1869 e os três tomos do Romanceiro Geral Português, 1906-9), e de Victor Eugénio Hardung (Romanceiro Português, 1877). Garrett, no prefácio de Adozinda (1828), escreve que “de pequeno me lembra que tinha um prazer extremo de ouvir uma criada nossa em torno da qual nos reuníamos
26 Apud. Idem, p. 121-2.
27Apud. MENÉNDEZ PIDAL, R. Los Romances de América y Otros Estudios ,
p. 31-2.
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nós, os pequenos todos da casa, nas longas noites de inverno, recitar- nos meio cantadas, meio rezadas, estas xácaras e romances populares de maravilhas e encantamentos, de lindas princesas, de galantes e esforçados cavaleiros. A monotonia do canto, a singeleza da frase, um não sei quê de sentimental e terno e mavioso, tudo me fazia tão profunda impressão e me enlevava os sentidos em tal estado de suavidade melancólica, que ainda hoje me lembram como presentes aquelas horas de gozo inocente, com uma saudade que me dá pena e prazer ao mesmo tempo”. Entrando no século XX, os romances portugueses, em seus textos literários e musicais, foram conhecidos a partir de Velhas Canções e Romances Popular es Por tugueses (1913, de Pedro Fernandes Tomás),Romances e Canções Popular es da Minha Ter ra (1921, de Francisco Serrano), os romances e melodias inseridos no Canci o-
neiro Musical da Galícia(18 42 ), A Canção Popular Portuguesa (1953, de

Fernando Lopes Graça) eCancioneir o de Monte Córdova (1958, de Lima Carneiro).28Comenta o pesquisador açoriano J. M. Bettencourt da Câmara que “o veículo da difusão do Romance tradicional até para- gens longínquas é, evidentemente, o formidável movimento de ex- pansão marítima que, a partir de fins do século XIV, é empreendido pelas duas nações peninsulares. Com os portugueses e espanhóis, impelidos pela circunstância político-social dos dois países para a aven- tura do mar que a lenda medieval povoava de monstros, chegaram às terras descobertas simultaneamente o desejo dos valores materiais que se esperava retirar delas e as formas culturais trazidas da terra de origem, incluindo formas poético-musicais populares ou populari- zadas, como o romance”.29 Para um povo de vocação navegadora, espremido por Castela a empurrar e o Atlântico a libertar (Porto, Portugal...) – pondera Pedro Calmon –, claro que as cordas da viola zuniam nos desembarques portugueses. A época dos descobrimen- tos foi o esplendor da viola em Portugal. Não são poucos os roman- ces marítimos, como o seguinte trecho do Romance da Nau Catarineta, muito próximo do texto consagrado por Garret, e copiado por Sílvio Romero, numa versão rio-grandense:
28CÂMARA, J. M. Bettencourt da. Música Tradicional Açoriana, p. 32-3.
29Ibidem, p. 38. A revitalização do Romanceiro em Portugal é detalhada com
densidade noDicionário das Literaturas Portuguesa, Brasileira e Galega, de Jacinto
do Prado Coelho.
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ROMILDO SANT’ANNA
Não tinham mais que comer,

Nem tampouco que manjar;
Botaram solas de molho,
P’ra no domingo jantar;
A sola era tão dura
Que não podiam tragar.30
* * *

A forma do romance, introjetada e sonoramente automatizada pelo conhecer popular, se reproduz em todos os desvãos da querência brasileira, sedimentando heróis legendários, históricos e verdades coletivas. As façanhas do herói negro ou do herói indígena, por exem- plo, associadas ao padecimento do índio nacional, são registradas em significativa antologia de poemas, a maior parte exaltada pela mundividência romântica do bom selvagem. Tratamento análogo é dado ao preto. O herói guarani José Tiaraiú (ou São Sepé), da guerra das Missões, é cantado no romanceO Lunar de São Sepé, recolhido por J. Simões Lopes Neto em 1902, e citado por Pedro Calmon. Vale a pena admirarmos um certo sabor de arcaísmo próprio do romance e a singela maestria dos seguintes sextetos (ou versos-e-meio, no regio- nalismo caipira):
Eram armas de Castela

Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem:
Mas quem faz gemer a terra...
Em nome da paz não vem!
............................................
Do sangue dum grão-cacique

Nasceu um dia um menino, Trazendo um lunar na testa, Que era bem pequenino:
Mas era um – cruzeiro – feito
Como um emblema divino!...
30Apud. CALMON, Pedro.Na u Ca tarineta. In:História do Brasil na Poesia do Povo,
p. 17-26.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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Diferente em noite escura,
Pelo lunar do seu rosto,
Que se tornava visível
Apenas era o sol posto;
Assim era – Tiaraiú –,
Chamado Sepé, por gosto.
............................................
Das brutas escaramuças
As artes e artimanhas
Foi o grande Languiru

Que lh’ensinou; e as façanhas
De enredar o inimigo
Com o saber das aranhas...31
* * *

O romance de tradição ibérica sobrevive em várias regiões do Brasil. Câmara Cascudo cita os muitos registros feitos pelo Almi- rante Lucas A. Boiteux no Estado de Santa Catarina, embora sem música; cita também as dezenas de encontros compilados por Rossini Tavares de Lima, nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso, os achados de Guillerme de Santos Neves, no Espí- rito Santo, outros achados de Fausto Teixeira em Minas Gerais.32A maior ocorrência de variantes de temas concretos do Romanceiro tradicional na zona nordestina, e sua menor incidência no períme- tro caipira, demarcado pelas Regiões Centro-sul e Sudeste do Brasil, explica-se pela decisiva relação texto/zona geográfica. Determina- dos temas podem ou não se fixar ou ser incorporados a um lugar, ou determinar variantes adaptadas ao contexto histórico-geográfico da região, ou simplesmente serem suprimidos do processo espon- tâneo da transmissão oral. Isto depende do impacto que o tema e a própria natureza física do poema exercem sobre fatores concretos e legitimados socialmente em cada região. É necessário ressaltar que, em Portugal e Espanha, o mesmo fato se dera, tanto em relação ao Romanceiro tradicional, quanto à sua projeção nas formas roman-
31Apud. CALMON, Pedro. O Bom Índio. In:História do Brasil na Poesia do Povo, de
p. 55-61.
32 CASCUDO, Luís da Câmara.Dicionário do Folclor e Brasileir o, de p. 680-1.
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ROMILDO SANT’ANNA
ceadas posteriores. Há sobre o assunto importantes estudos de
Menéndez Pidal, como Sobre Geografía Folklórica - Ensayo de un Méto-
do, continuado por Diego Catalán e Álvaro Galmés em Como Vive
un Romance33.

Na perspectiva de sua ressonância pela identificação com certas modulações temáticas do Romanceiro tradicional, o Nordeste bra- sileiro é mais permeável ou aberto como disponibilidade de aceita- ção, em vista do mantenimento de certas condições históricas e políticas arcaicas a repercutir nos padrões dominantes da cultura. Franklin Távora, no prefácio de O Cabeleira (1876) escrevera: “Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem as suas aspirações, seus interesses e há de ter, se já não tem, sua política.”.34Explica Souza Barros que “no vasto interior do Brasil, oc o r o n e l , até 1930, exercia todos os poderes de polícia e só algumas cidades se livraram indiretamente desse mandonismo que não deixava de ter uma explicação como estrutura arcaica e necessi- dade imposta pelo isolamento da distância e pela ausência completa de Poder Público”.35 Vigora um patriarcalismo fechado, na tradição do senhor de engenho colonial e do coronel republicano – de bo- tas, rebenque e chapelão –, perseverante em seus eitos de autoritarismo. A dominação alimentada pelo mando do coronel sobre os eleitores matutos é registrada pelo jurista Víctor Nunes Leal, no livro clássicoCoronelismo, Enxada e Voto (1949). A evocação desse sistema, em infindáveis cantares, se realça no excerto de “O Júri”, do paraibano Pompílio Diniz:
Dispois foi preso e jurgado
Pelo Juiz de Dereito

Que tombém é Delegado Cum exirciço de Prefeito... É ele nessa cidade
33Apud. ATERO, Virtudes e PIÑERO, Pedro M. Romancer o de la Tradición Moder-
na, p. 33.
34Apud. COUTINHO, Afrânio.O Regionalismo na Ficção. In:A Literatura no
Brasil,p. 251.
35BARROS, Souza.Ar te , Fo lclor e e Su bdesenv olvime nt o, p. 42.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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Um home de oturidade
E o que fizé tá bem feito!36

O coronel seria “dragão da maldade”, na alegoria cinematográfica de Glauber Rocha. Repetindo formas embrionárias senhoriais do feudalismo, o interesse privado da Casa Grande se sobrepõe ao de- senvolvimento dos interesses públicos, gerando formas localizadas de despotismo. Ainda que, com a Revolução de 1930, a força opressi- va do poder de polícia tenha diminuído em ostentação, esse domínio político persiste até o ocaso do século XX, momento em que me ponho a redigir este Ensaio. Os “coronéis caipiras”, entretanto, agem sob outras fórmulas. Decorre desta dinâmica o fato de que certos enredos do Romanceiro calcados namitologia do cristianismo medieval logo se dissiparam, tiveram pouca ressonância ou rapidamente se transformaram na Moda Caipira, a ponto de dificilmente serem reco- nhecíveis em suas motivações temáticas de origem.
* * *

No entanto, embora não tão freqüentes como nas cantigas po- pulares sertanejas, as Modas Caipiras registram essas remembranças seculares matizadas pela geografia peninsular, ou presentes nos ci- clos de gestas do Romanceiro tradicional. Mas há uma diferença essencial que repercute na menor incidência do Romanceiro, e essa diferença sobrevém do conceito de quem veio a ser o caipira. O habitante rústico gerado no planalto de Piratininga, com sua agri- cultura itinerante, é sempre empurrado para o fundo do sertão, devido à violência da expropriação da terra. Situa-se comumente na rebarba da cultura dominante. Porém, talvez por herança ancestral indígena, enfrenta o desconhecido, e avança em busca de novas terras, em princípio às margens do Rio Tietê. O caipira é enxerto do habitante nativo – índios (principalmente de tribos Xavantes, Guaranis e Caigangues ou “Coroados”, quase dizimadas pelos
bugreiros, nas marchas colonizatórias, entre 1850 e 1910), brancos

ibéricos, “quase-brancos”, pardos, mulatos e negros –, mais o migrante das mesmas cores, vindo das Minas Gerais, empurrado para o interior de São Paulo pelo escassamento do ouro e, a partir
36“O Júri”, de Pompílio Diniz. In: Mané Gonçalo: Poesias. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1959, p. 17.
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do final do século passado, o braço e o coração migrados, principal-
mente da Itália.

Fixando-se na base nativa, após sublinhar que “na verdade, o caipi- ra é de origem paulista; é produto da transformação do aventureiro seminômade em agricultor precário, na onda dos movimentos de pe- netração bandeirante que acabaram no século XVIII”, Antonio Candido ressalta que “a cultura do caipira não é nem nunca foi um reino separa- do, uma espécie de cultura primitiva independente, como a dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e portanto veio na maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português antigo”. Reconhecendo a peculiaridade de ser do brasileiro em suas regiões e, portanto, com as suas características adaptativas, sublinha o professor Candido: “é preci- so pensar no caipira como um homem que manteve a herança portu- guesa nas suas formas antigas. Mas é preciso também pensar na trans- formação que ela sofreu aqui, fazendo do velho homem rural brasileiro o que ele é, e não um português na América”.37

Já na primeira parte do oitocentismo, com a fundação da Acade- mia de Direito (1838), e conjuntamente com as transformações que se deram no país na virada do século (Lei Áurea, Proclamação da República), a capital paulista tornou-se um centro intelectual, literário e econômico. Isto determinou o marco divisório entre a tradição “atrasada” da cultura caipira, identificada com o interior do Estado, e a cultura “adiantada” da capital, ligada ao progresso, comércio, indús- tria e modernidade. Raymond Williams escreveu que “o campo pas- sou a ser associado a uma forma natural de vida – de saber, comuni- cações, luz... o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação”.38 O caipira paulista identificou-se com o agricultor itinerante, em esta- do de isolamento entre as comunidades do interior, por sua vez isoladas da capital.
***

Vale lembrar, ainda que de passagem, que o Romanceiro tradicio- nal vindo ao Brasil representa uma etapa evolutiva já bastante refina- da do antigo romance ibérico. Houve uma evolução semelhante à que explica o porquê da evolução da rima assonante ou parcial em rimas totais, nos romances modernos e, como veremos, nas formas popu-
37“Caipiradas”. In: CANDIDO, Antonio. Rec or tes, p. 249.
38O Campo e a Cidade: na História e na Literatura, p. 11.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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lares brasileiras e, acentuadamente, na Moda Caipira. A evocação de um romance popular, talvez tradicional, talvez uma variante moder- na, encontra-se explicitada na tópica exordial de verso triplo (12 linhas) da moda-de-violaCatimbau, de Carreirinho (Adauto Ezequiel, Bofete – SP, 1921-) e Teddy Vieira:
CATIMBAU
moda-de-viola
Carreirinho / Teddy Vieira
Tive leno num romance
De um casal de namorado
De Rosinha e Catimbau
Dois joves apaixonado.
Rosinha, família rica,

Catimbau era um coitado, Capataiz de uma fazenda, Mas trabaiador honrado... Adomava burro brabo,
No laço era respeitado...
Um caboclo destemido
Ai, por tudo era admirado, ai!
(Tião Carreiro e Pardinho, Modas-de-viola
Classe A - v.3, 1981.)

Há ocorrências bem marcantes de antigas motivações temáticas na Moda Caipira. Um peão roncando as vantagens de suas vitórias em rodeios diz que “já montei até no cão! / nunca precisei de freio, / pra montá em bichopagão” (Boi Veludo, 1959, de Lourival dos Santos e Jesus Belmiro); noutro romance, diz o eu-cantador que “quando eu era criancinha / tinha mar inclinação / eu arriscava minha vida / pra montá em quarquépagão” (Moda do Peão, de Cornélio Pires [Tietê-SP, 1884-1958] supostamente interpretada por Mariano e Caçula, no disco pioneiro nº 20007, de 1929, da Série Cornélio Pires), ambas referindo-se ao manga-larga mestiço adjetivado como “pagão”, em remembrança cruzada ao terrível mouro a campear em terras católicas de El Cid. Exem- plo notável, embora raro, da permanência de enredos literários do
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Romanceiro tradicional no mundo caipira é a moda-de-violaNova Lon-
drina, de Teddy Vieira e Serrinha (Teddy Vieira de Azevedo, Itapetininga-

SP - 1922-1965; Antenor Serra). Constituída à base de estrofes de “ver- so dobrado”39 isométrico e de a isorritmia das células ternárias de arte maior (decassílabos com acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas, tão comum no
martelo agalopado nordestino), anapéstica (estilo ligeiro e fluente de se-
qüências de duas sílabas breves e uma longa – tã-tã-tã–tã-tã-tã–tã-tã-
tã...), sendo essas estrofes intercaladas por uma quadra heterométrica,
Nova Londrina revela traços de permanência do imaginário carolíngioe

guerras entre cristãos e mouros, das gestas francesas e castelhanas, com a história relacionada ao imperador Carlos Magno e heróis a ele ligados como Oliveiros, Roldão, sobrinho de Carlos Magno, os Doze Pares de França..., incorporados ao mundo imaginário caipira:
NOVA LONDRINA
moda-de-viola
Teddy Vieira / Serrinha
Pra corrê o Norte do Paraná
Eu comprei uma mula argentina

Por ser besta boa pra marchá Puis o nome de Campolina. Vô cortá trinta légua de mata No dobrar daquelas colina
Quatro ferradura de prata
E uma fita amarrado na crina.
Me veio na lembrança os treis par de França,
Seis home valente, matô muita gente,
Eu abanco o Rordão, naquele sertão
De Nova Londrina.
(Vieira e Vieirinha,Garça Branca, 1966)
* * *
39 Cabe observar que é comum entre os caipiras designarv e r s o pelo que
corresponde a uma quadra. Neste sentido, “verso dobrado” significa duas
quadras e “verso e meio”, um sexteto.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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É oportuno observar que procurarei reproduzir neste Ensaio o “linguajar estropiado” caipira, tal como é pronunciado pelas duplas, nas gravações em disco, de modos que a legibilidade se aproxime da elocução original. Procura-se com isto manter o metro, o ritmo e o encarrilhamento original das rimas. O leitor vai notar uma diferença às vezes grande de registro lingüístico entre os vários locutores. Exis- tem nas cantorias e tertúlias a fala de si mesmo em seus vários matizes, e afala do outro em sua própria fala. Daí as diferenças notáveis entre os registros de fala de Vieira e Vieirinha (Rubens Vieira Marques, 1926-; Rubião Vieira, 1928-1990, nascidos em Itajobi-SP), por exemplo, em relação a Tião Carreiro e Pardinho. Na cronologia desta última dupla vamos sentir uma paulatina assimilação do “falar correto do outro” em sua fala, à medida em que os artistas interagem nos vários lugares, dos cafundós rústicos do campo aos ambientes mais refinados das cidades. Há, por assim dizer, a projeção mediadora do discurso letra- do – em última análise escrito – sobre a natural oralidade corrente no bairro rural. A fim de demarcar os vários registros, os testemunhos e relatos de experiências de artistas caipiras, no decorrer deste Ensaio, serão transcritos, ipsis verbis, do gravador. Enfatizo que contra a trans- crição desse processo dialetal caipira já houve alguma manifestação em contrário e, observadas as diferenças regionais pelo interior de São Paulo, Sul de Minas Gerais e Mato Grosso, parte de Goiás, Norte do Paraná, além de algumas áreas rurais dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo (a zona caipira é uma espécie de expansão da antiga Capitania de São Vicente), este é um dos pontos marcantes de especificidade e conseqüente preconceito contra os habitantes das zonas rurais das citadas regiões. Perceptível e estigmatizada como “errada”, a fala caipira pouca importância dedica às regras sintáticas de concor- dância, talvez pela percepção da redundância da regra normativa e, em muitos casos, pela pouca diferença fonética entre singular e plural, sem nenhuma implicação que turve o sentido lógico e poético do vernáculo. A “correção”, ademais, soa como enunciado pedante, afe- tado, divorciado de seu contexto geopolítico. Amadeu Amaral co- menta que “foi o que criou aos paulistas, há já bastante tempo, a fama de corromperem o vernáculo com muitos e feios vícios de lingua- gem”. Relata esse estudioso do caipirismo que “quando se tratou, no Senado do Império, de criar os cursos jurídicos no Brasil, tendo-se proposto São Paulo para sede de um deles, houve quem alegasse
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ROMILDO SANT’ANNA

contra isto o linguajar dos naturais, que inconvenientemente conta- minaria os futuros bacharéis, oriundos de diferentes circunscrições do país...”40
* * *

Retornando às considerações sobreNova Londrina, a respeito da modificação tão evidente (“treis par de França”), isto se explica pela própria sucessão da oralidade, na vagareza do tempo. Os números se perderam porque não foram registrados em livros; encontram-se pulverizados em informações e circunstâncias difusas na memória popular. No caso em tela, portanto, o episódio do imaginário carolíngio passou a ser objeto adquirido da literatura e, deste modo, vivo e histórico. Porém, como é comum, a memória coletiva, a im- provisação popular na corrente da oralidade, tende a remoçar os acon- tecimentos reais ou imaginários, transformando-os de verídicos his- tóricos em verídicos artísticos. Esclarece Arnold Hauser, abordando o mesmo assunto sob a óptica sincrônica da épica medieval, que “a última interpretação não é, necessariamente, a ‘mais arguta’; mas toda a tentativa séria para interpretar um trabalho sob o ponto de vista de um presente vivo aprofunda e alarga o seu significado. Todas as teo- rias que nos mostram a poesia épica de um ponto de vista novo e historicamente válido são úteis, porque nos interessa, mais do que a verdade histórica com ‘o que realmente aconteceu’, conseguir uma aproximação direta e nova do assunto”.41

O assunto de que estamos tratando é um enredo que repercute no tempo, e se enleia às situações hodiernas em Nova Londrina. Em colóquio com Rubens Vieira Marques (1926-), o Vieira, da dupla Vieira e Vieirinha, gravada em l6.set.1994, o artista explica que

As moda que nóis canta têm muito de romance, de ima- ginação, mas têm muito de verídico, porque o povo com- prova as história. Moda-de-viola é ansim: tem muito de verdade e tem muito de mentira. É que nem um filme de cinema. Tem gente muito antiga que ouviu falá e até co- nheceu os trêis par de França, que era um bando persegui- do pela capitura e que vivia na região de Maringá (que nem enxistia naquela época). O Rordão era um caboclo muito
40AMARAL, Amadeu.Dialeto Caipira, p. 41.
41HAUSER, Arnold.História Social da Literatura e da Arte - I, de p. 228.
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valente que ajudava os pobre e pertencia ao bando. Diz que ele nunca chegô a sê preso, porque era protegido pelo próprio delegado da capitura. Quando nóis foi pra São Paulo, eu com o Vieirinha, nóis cantavaNova Londrina. Cantava ela muito comprida, tinha muitos verso [estro- fes]. Então o Serrinha e o Teddy Vieira pegô a letra, que achava muito bonita, e reduziu ela pa que cabesse dentro do disco. Então ficô aqueles verso que cê conhece. O que eu vejo falá do Rordão, no Paraná, é que foi um home bão, por um lado, mas perigoso, muito matadô e muito brabo. Os trêis par de França era também muito brabo. Rordão, eu num sei de que idade ele é, mas deve sê muito véio, né? Só os antigo conheceu ele. E enxistiu, sim se- nhor. Enxistiu o Rordão e os par de França também, lá no Norte do Paraná. É a mesma coisa que Lampião, que nóis conhece do nosso tempo. O Rordão e os par de França é que nem o Lampião e os cangacero...

Em Nova Londrina enxistia muito grilo de terra, grilage da terra que era muito boa, terra roxa... Então o personage da moda “abancô o Rordão”, pra acabá com a grilage de terra, e protegê coitadinho que já vivia na terra perseguido pelos jagunço dos fazendero. O Rordão era do lado bão, como eu falei. O Teddy era tenente do Exército, e conhecia essas história em livro. Decerto enxistia essas história ar- quivada lá no Exército. Então porque era verdade no Paraná e porque era verdade nos livro, daí nasceu a moda
Nova Londrina, que nóis gravemo e foi sucesso.42

São palavras verdadeiras? Respondo que sim, num dos sentidos difusos e plausíveis de verdade, relativizados pelo tempo, como for- tuna admitida pelo imaginário e consenso coletivo. Verdade jurada, pois aversão torna-seacontecimento, valendo mesmo mais que este. Extingue-se, por assim dizer, a verdade pontual relatada porum indi- víduo, ao enlear-se e energizar-se de sentidos, na imaginação criativa comunal, sempre posseira de um contexto histórico vivo. De qual- quer modo, havendo como não há dúvida de que haja, um mecanis-
42 Coletei seis horas de gravações com Vieira, entre os anos de 1994 e 1995.

Esse artista, de vasto preparo e com uma carreira de mais de 50 anos, configu- ra-se como nosso principal informante de situações reais e imaginárias do mundo caipira.
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mo de indefinição no processo de referencialidade, a alusão aos “treis par de França” suscita muito mais um apelo à imaginação que propri- amente a lembrança de uma situação palpável da experiência. Mais ou menos nessa linha, Northrop Frye lança mão da noção de mundo
hipotético. No correr desse pensamento, Paul Ricoer escreve que “a
hipótese poética é a proposição de um mundo sob o modo imaginati-

vo, fictício. Assim, a suspensão da referência real é a condição de aces- so à referência sobre o modo virtual. Mas o que é a vida virtual? Poderá existir uma vida virtual sem um mundo virtual no qual seria possível habitar? Não será função da poesia suscitar um outro mun- do – um outro que corresponde a possibilidades outras de existir, a possibilidades que sejam os nossos mais próprios possíveis?”43

Na poesia, a palavra se propaga entre as palavras, e constrói um mundo de palavras, diferente do mundo das coisas. O mundo de palavras existe para significar. E significa, se for realmente um mun- do, ou seja, a poesia. A proposição dos autores Teddy Vieira e Serrinha tem muito mais de afetivamente evocativo que de referencial e suscita a especulação e divagação sonhadora. Realiza-se uma definição aceita, mas conceitualmente indefinida, um jogo no qual concorrem muito mais as matérias significantes dos signos, deixando aos receptores uma brecha para o vôo imaginativo tão característico da obra aberta de que trata Umberto Eco.

No primitivismo da Moda Caipira há uma polivalência funcional que, ao mesmo tempo, se aproxima do desi gnat um – a coisa ou situa- ção referidas –, dá-lhes uma amplitude de sentidos, uma transcendência que ultrapassa a realidade tangível, situada e datada. Os horizontes de sentido da obra, embora correlatos, nunca são idênticos à realidade bruta. Há um deslocamento do prosaico para o poético; passa-se do denotativo paraco-notati vo. Deste modo, trata-se de uma poesia duplamente positiva já que, sem infringir o código corrente, ela o repõe numa dimensão superior. Esclarece o erudito italiano que “quem comunicar conforme tal intenção sabe também que o halo conotativo de um ouvinte não será igual ao de outros eventualmente presentes; mas, tendo-os escolhido em idênticas con- dições psicológicas e culturais, pretende justamente organizar uma comunicação de efeito indefinido – delimitado porém por aquilo que
43RICOER, Paul. A Metáfora Viva, p. 341-2.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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podemos chamar decampo de sugestividade.44Neste sentido, o auditó- rio seria o interlocutor abstrato regenerado e latente na consciência do autor, no processo da concepção do texto. Este é abstrato porque se realiza no horizonte da cultura. Possui um nível de significação que está para além da superfície aparente dos significados. Essa proposta com função sugestiva abre campo, por assim dizer, ao fator significante da poesia, carreando ingredientes de transição da unicidade referencial para a poeticidade da mensagem. Trata-se de um procedimento mui- to sutil e ilustrativo de como funciona o modo conotativo no linguajar da Moda Caipira de raízes, modo esse que nunca dispensa, a partir do princípio literarizante do texto, a participação co-produtiva desse ou- vinte abstrato. Isto se dá pela passagem do unívoco para o plural, do individual para o plenário, do datado e circunstancial para o poético. A respeito de ocorrência análoga, ensina Menéndez Pidal: “a poetização individual, sempre agitada, sempre revolta entre a multiplicidade de acidentes particulares e efêmeros próprios do momento atual, se de- canta límpida e pura sob a ação sedimentadora da tradição. Qualquer desejo de novidade se extingue. O poeta inicial e os refundidores sucessivos se desvanecem; todo personalismo autoral desaparece submerso na coletividade”.45 O que vale é a imaginação que se agrega ao saber comum, correndo de boca em boca, afortunado pela lapidação do tempo. Esse, como se pode constatar, é um dos pontos essenciais do rito de transição darealidade histórica, quer dizer, daquilo que é assim mesmo, em r ealidade ar tística. A imaginação interpola-se à reali- dade. Jerusa Pires Ferreira, ao enfocar esses “lapsos” referencializantes, como os que ocorrem em Nova Londrina, tão naturais e freqüentes, e que deslizam para o mundo literário das palavras, escreve que “se a poesia popular é memória e recriação, lembrança intensa e permanen- te de matrizes arcaicas que se rearranjam, agrupam e recriam em pro- cessos contínuos, cresce de importância a avaliação do fenômeno: a falha de memória”.46 No entanto ela é aceita, prazerosa e funcional- mente, na escritura popular.
* * *

44ECO, Umberto.Ob ra Ab er ta, p. 78.
45Romancero Hispánico (Hispano-Portugués, Americano y Sefardí) - I, p. 61.
46FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memória (Conto e Poesia Popular), p.38.
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Em páginas precedentes deixei consignada indagação sobre como obras literárias famosas, por terem caído no gosto popular, se transformaram em fontes temáticas da Literatura Popular. Tais narrativas, lidas geralmente em voz alta, convertem-se em fábulas a serem contadas oralmente, como se fossem “causos” vívidos ou provindos de motivações acontecidas. Ancoram-se em fatos e situ- ações acontecidos ou se referem a lugares existentes para proporcio- nar efeitos de realidade. Por isto, adaptam-se ou se ajuntam aos con- teúdos imaginários e tangíveis, e se sedimentam no verídico. Reali- zam o percurso de passagem do signo escrito em signo de dicção oral, muito freqüente, e que se equaciona em máximas do tipo “conta-me um conto”. De fato, até pelas condições de dificuldades de acesso ao livro, pela pouca familiaridade com as letras, o prazer do texto tipografado reivindica a volta ao estágio de oralidade, in- terpondo entre o signo escrito e o auditório a decisiva participação recreativa e re-criativa do intérprete, considerado num primeiro es- tágio o escritor de modas (no pertencimento caipira, a grande mai- oria das modas vem assinada por uma dupla de autores); num segundo, o porta-voz do poeta popular, que canta à viva voz, com suas teatralizações de miragens, relações interativas e co-produtivas com a assistência. Esse emissor de mensagens será comumente referido por o violeiro-cantador, o modista ouo cantador: aquele que anda com intenção sonhosa na cabeça. É ele que, deixando de lado o nome de batismo e sua história de vida privada, assume a máscara e encarna de corpo e alma a criatura projetada de sua existência: o ídolo, no resplendor.
***

É necessário entender que o processo de concepção literária asso- cia-se à criação de imagens visuais, além de provocar correlações com experiências concretas. Os jesuítas tinham plena consciência desse fato, ao se relacionar com populações iletradas. Trata-se de experiência ad- quirida que remonta há séculos: os afrescos das igrejas medievais, as ilustrações dentro dos textos, a oralidade dos sermões eram agentes de transmissão entre a igreja e seus fiéis. Além dos aspectos lúdicos e artísticos dos atos de recitar e cantar, não é difícil entender por que os jesuítas usaram as formas do Romanceiro tradicional como estratégia de evangelização.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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Difundido no devocionário dos jesuítas (que chegaram ao Bra- sil em 1549), o Romanceiro tradicional está na origem dos princi- pais afluentes de modas caipiras. AMo d a - d e - v i o l a que, por sua fabulação novelesca e legendária, autênticas xácaras, mais homologia apresenta com o Romanceiro. É cantada à capela e, ao mesmo tempo, com duas violas, uma ponteada e outra batida. Durante as estrofes, e marcando o ritmo, a melodia é perseguida pela ornamentação ponteada das cordas mais finas e agudas, difi- cilmente audíveis nas gravações antigas. O acompanhamento ins- trumental se evidencia no intervalo entre as estrofes, funcionando como elemento de suspense e anti-clímax, despertando o interes- sa pelo porvir lírico-narrativo da estrofe seguinte. Oc u r ur u e o
cateretê – os mais primitivos dos sons caipiras – são amálgamas,

mediações e adaptações de danças e cantares ameríndios. Embora os europeus pensassem que europeizavam os indígenas e africa- nos de pele negra, aqueles é que se aindiavam, se africanizavam... se brasilizavam. Nesse sentido, o cururu e o cateretê tomaram a feição dos solenes autos religiosos e rituais de fé europeus, com acompanhamentos da viola, cantos e danças autóctones e primitivistas. Couto de Magalhães, em 1876, registra que “o paulista, o mineiro, o rio-grandense de hoje cantam nas toadas em que cantavam os selvagens de há quinhentos anos e em que ainda hoje cantam os que vagam pelas campinas do interior”.47 De fato, esses cantares persistem até hoje em algumas regiões, até como forma de resistência e fortalecimento da vida caipira. Nas zonas rurais, como as da região piracicabana e do pantanal mato- grossense, o Cururu é cantado em carreira, ou seja, com apenas uma rima, puxada por um cururueiro ou cantorião repentista, que enxerga e interage com o tocador de viola. Nhô Serra e Zico Moreira, de Piracicaba, são exemplos desses cururueiros persistentes. Além dos tradicionais temas religiosos, há os urbanos e os circunstanci- ais ouencontrados, abstraídos na correlação momentânea e interativa da cantoria. A platéia aplaude a cada estrofe reconhecendo-se refle- tida nas estrofes. ORe c o r t e ou Recortado Mineiro, de ascendência ameríndia e traços de música africana, é base fundamental doCatira (dec a t i r e t ê < cateretê), com seu repicado de violas entrecortado
47MAGALHÃES, Couto de. O Selvagem, p. 90.
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por palmas, sapateados e a coreografia dos intérpretes. Por ele ser seccionado pela dança, as estrofes do recortado quase sempre têm motivações próprias, guiadas pelo fio tênue de um mote ou o motivo principal que unifica o todo. ATo a d a, mais melodiosa e lânguida, caracteriza-se como espécie catalisadora do caudal de can- tares tradicionais brasileiros. Com sua riqueza polimorfa e assimetria versal e estrófica, num estilo retórico-expositivo, são
toadas algumas das mais queridas modas caipiras gravadas em dis-

co nas várias épocas. As mais famosas toadas caipiras se dividem em dois tempos lírico-narrativos: uma introdução declamada e um desenvolvimento cantado. Esses tempos podem ter metrificações e estrofações próprias. O Pagode de Viola, afluente recente e ladino, é enxerto repicado e trepidante do Recortado Mineiro com o Catira, admirável pelos ornamentos veementes e sensacionais da viola, tendo os toques de violão no contratempo. Realizado quase sempre com a exuberância das antigas Cantigas de
Meestria48 , possui uma estrutura poemática fincada no preceito

artístico da associação de idéias, em que “uma coisa puxa a outra”, das construções anafóricas (repetições das mesmas estruturas), da polifonia das correlações internas no interior dos versos e estro- fes. Sem enredo narrativo e puxadas pelo fio tênue de um mote que lhe propicia o contexto (como no vilancete medieval), as es- trofes do Pagode de Viola têm motivações que sobrevivem no interior delas mesmas, e se articulam entre si formando uma se- qüência elíptica, fragmentária, prevalecendo a motivação temática predominante – o mote.

Exceto alguns gêneros menos ocorrentes e sobretudo o Pago- de de Viola, a Moda Caipira, de acordo com o modelo tradicional vigente nas camadas pobres dos grupos rurais, ou deles provin- dos, baseia-se num encadeamento lírico-narrativo que lhe confere uma espécie de “legalidade interna”: o tema se desenvolve de acor- do com o padrão de enredo na linha do princípio, desenvolvi- mento e desfecho. É primitivista, crua e direta e, no caudal do
48 AsCantigas Medievais de Meestria são composições poemáticas de sete versos

em cada estrofe. Usamos o designativo na acepção também usual de “compo- sição de mestre”, isto é, muito requintadas do ponto de vista técnico e, por isto, muito difíceis em suas elaborações.

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