Origem da plavra Caipira

Baseado na Grande Reportagem “Os Rumos da Música Caipira no Vale do Paraíba”, de Anderson Borba Ciola e Fábio Cecílio Alba, a origem da palavra caipira ainda é motivo de controvérsias. Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luiz Câmara Cascudo, a palavra significa “homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. Habitante do interior, tímido e desajeitado...”. Robert W. Shirley, em seu livro “O fim de uma tradição”, critica a posição de Câmara Cascudo, dizendo que: “Esta definição em si mesma, revela a extensão da grande lacuna social entre os escritores urbanos e os camponeses, pois, de fato, o caipira tem uma cultura distintiva e elaborada, rica em seus próprios valores, organizações e tradições”. Já no Dicionário Aurélio é encontrada a seguinte definição: “Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos”. Cornélio Pires, jornalista e violeiro, em seu livro “Conversas ao pé do fogo” define a palavra caipira da seguinte forma: “Por mais que rebusque o étimo de caipira, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi-guarani capiâbiguâara. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto, neste caso temos a raiz ‘caí’, que quer dizer gesto de macaco ocultando o rosto. Capipiara, que quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do mato, faz lembrar o capiau mineiro. Caapiára quer dizer lavrador e o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último o mais aceitável, pois caipira quer dizer roceiro, isto é, lavrador...”.

19.7.11

continua(http://pt.scribd.com/doc/6620451/Moda-e-Viola

a Dinorath doalle, V
Reinaldo Volpato,
Pedro Ganga,
Alaor dos Santos Júnior,
Pedro Beretta Sant’Anna
Guilhermoe la Cruzoronado d C
e Boi Soberano

















A recusa aos bons modos é passo dado em direção à poesia,
quer dizer, ao bom modo. O diabo é que o poema é um ajuntamento
refinado de bons modos, senão, seria poesia pura.
Romildo Sant’Anna



Romildo Sant’Anna
SUMÁRIO

O homem da viola e a própria.......................................................13 I - Levante...........................................................................................17 II - Configuração do cantar caipira..............................................29

1. O romanceiro tradicional e sua extensão na moda caipira..... 29 2. Cultura de raízes e etnotexto................................................... 69 3. Moda caipira, raízes e brasilidade............................................ 91 4. O cantador e sua função interativa........................................ 111 5. O sentimentalismo reinante.................................................. 135 6. A Moda é Viola em várias épocas e lonjuras....................... 207 7. O caipira não é moda: o herói cantador............................... 239 8. As sagaranas do herói boi...................................................... 291
III - Moda caipira e reflexões sobre o hoje em dia................331

9. Moda Caipira no Contexto Social......................................... 331 10. Moda Caipira Hoje em Dia................................................. 349 11. Acordes derradeiros.............................................................. 373
V - Referências Fonográficas......................................................381
V - Referências Bibliográficas....................................................385
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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O HOMEM DA VIOLA E A PRÓPRIA
Dinorath do Valle

Trabalho muito especial este “retrato de mim”, fôlego de grande fazedor. Romildo Sant’Anna mostra mais uma faceta de seu amor às coisas do povo no recenteA Moda é Viola. Ensaio do Cantar Caipira. À vôo de pássaro, enfoca quarenta anos de literatura oral-popular em seus mais sensíveis momentos, em texto que desvela as qualidades literárias de um pesquisador incansável, que propõe o mergulho a dois – ele e o leitor – na Moda Caipira.

Neste novo trabalho, Romildo reafirma a transparência das pró- prias origens que preserva, filho de palhaço de Folia de Santo Reis, arranhador de viola, amante de modas com que o rádio encheu-lhe a infância em modestíssima casa num dos cantos de São José do Rio Preto. A moda caipira lhe entrou na alma com o cheiro do café da manhã, como confessa. É justo, portanto, que reverencie a moda e ele próprio, neste esplêndido trabalho que reconstitui seus começos. Não sem clamar contra o desprezo com que as elites brindam a produção dos despojados do refinamento cultural, que o autor possui e do qual não abusa. Uma de suas propostas é levantar a cortina de despre- zo que cobre a estética da moda caipira: sua motivação irrefreável neste texto escrito em final de milênio. Todos os dias de sua vida sensível, inteligente e fiel às realidades do povo brasileiro. Por mais que ascenda na carreira de ensinar, na carreira de escrever, Romildo supera a si mesmo em A Moda é Viola, tese de livre-docência, ideal de livre docência, homenagem ao povo do qual faz parte por direito de
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ROMILDO SANT’ANNA
senti-lo parte de si mesmo. Romildo não escreve sobre o semelhan-
te; é o semelhante.
O livro tem duas partes:a configuração do cantar caipira emoda caipira
e reflexões sobre o hoje em dia.E onze capítulos que passam velozes,

esbanjando as associações de um estudioso, e as intuições de criativos iletrados. Do romanceiro tradicional às sagaranas do herói-boi, em vários tons antes dos acordes finais, passa pela cultura das raízes, retrato falado do cantador, sentimentos, épocas, lonjuras, sagas e heróis. Bombardeia com informações: veículos da origem da moda caipira, romanceiro tradicional, gêneros, moda de viola como cultura, índices de brasilidade do cantar caipira, criadores e modistas, cantadores como protagonistas, representantes do “nós-mesmos” em temas, escrituras, violas como instrumentos radicais, fetiches do violeiro, motores de sua arte.

Cantadores andarilhos, estradeiros, heróis ignorados, parte dos esquecidos, do lavrador assalariado. Temáticas especiais, românticas, dissertativas. O boi como símbolo do homem que o tange, no arado ou entre acordes aprendidos ao deus-dará. A migração do homem- boi para o túmulo-cidade no ultimo meio século, e a transformação da moda caipira via disco, via tema, via gêneros, via modismos.

Tudo num Brasil como sempre contraditório “entre a linguagem escrita e a oral, a cultura citadina e a rural”, onde a baixa escolaridade, a falta de consciência política e de aspirações sociais são marcas da desatenção dos governos. É assim que o poeta caipira que desconhe- ce a história do mundo cria. Como se o universo começasse com ele. Em sua solidão e apartheid social, descobre coisas descobertas e até faz delas belezas originais.

Romildo diz coisas sábias, discorre sobre o mais povo dos ho- mens do povo e seu criar solitário, sua sensibilidade. É a lucidez que faz Romildo perguntar a si, a nós: cadê o humano? O que responder ao estudioso que se debruça sobre a mais popular das literaturas, aquela que oficialmente não é considerada literatura? Que o povo fala certo, no falar errado, como Deus escreve certo por linhas tortas?

É ler para crer este magnífico A Moda é Viola. Se ele, Romildo, tivesse concorrido consigo mesmo ao “Prêmio Casa das Américas” de Cuba, ao lado de seu ensaio sobre José Antônio da Silva – que lhe deu o prêmio –, os jurados ficariam no maior impasse.A Moda
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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é Viola tem as qualidades do Silva, Quadros e Livros. Um Artista
Caipira, e o supera, mergulhando no genérico de todo um mundo

surreal onde se movem poetas singelos, sentimentos minimizados de compositores populares, temas alijados da dita cultura oficial. Este livro não saiu por uma editora de universidade do governo, onde o autor escreveu esta livre docência por quase trinta anos. Só isto já diz muito.
Dinorath do Valle é jornalista e escritora. Recebeu
o Prêmio Casa das Américas – Cuba, pelo romance Pau Brasil.
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I – LEVANTE
El mundo era tan reciente, que muchas cosas
carecían de nombre, y para mencionarlas
había que señalarlas con el dedo.
García Márquez, el Gabo
Cien Años de Soledad

Deixei para escrever a introdução em último lugar, quando já estava na fase de retoques e lapidações do texto. Fui fazê-lo na prima- vera de 1995. Ano e meio depois, quase pronto. São José do Rio Preto, pousada e eixo de antigos violeiros, completava o ciclo de ardência por causa do calor. Passei tempos lambendo a cria. Vejo o texto como artefato cujo cerne é a razão das palavras. Contemplando- o com o pouco distanciamento que, bem-dizer, a simultaneidade me permite, uma seqüência do filmeA Noite Americana (La Nuit
Americaine, França/Itália, 1973), de François Truffaut, começou a

aferroar-me o espírito. Fui à tevê e anotei o seguinte trecho cujo enunciador é a criatura do próprio Truffaut, parece que em carne e osso. Reproduzo o monólogo:

Fazer um filme é como uma diligência indo para o extremo Oeste. No início, você anseia uma bela viagem. E logo questiona se vai ao menos chegar a seu destino... (interrupção de atores) O que é exatamente um diretor? É uma pessoa constantemente questionada. Sobre tudo. Às vezes ele tem a resposta, mas nem sempre... (interrupção


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ROMILDO SANT’ANNA

de atores) Sete semanas, cinco dias por semana, trinta e cinco dias... (interrupção de atores) Como fazer um filme destes em trinta e cinco dias? (interrupção de atores) Con- tinuo com filmes porque gosto!

É mais ou menos isto que estou sentindo ao ver-me próximo dos acordes finais deste Ensaio. Forcejando por ser breve, imaginei- o bem menor, no espaço textual. Fiz o possível para enxugá-lo, de modos que a espessura das páginas correspondesse à densidade de substância reflexiva. Agora você, interlocutor, o examinará como produto e, no fundo da consciência e expectativas, julgará a consis- tência, e, na pior das hipóteses, se meu sacro ofício foi tuta-e-meia, desafortunadamente. Como este livro é retrato de mim e, nem carece de falar, uma empreitada proposital e assumida de “fazedor”, bem que não me custa enxergar nele, desde logo e agora que o releio, algumas passagens de bom tamanho,1 sugestões esclarecedoras e até interessantes. Pudera!, se nem mesmo eu me afeiçoasse dele, que seria de mim? Mas não depende dos propósitos que tive, nem do discernimento para empreendê-lo, descrevendo, deslindando enigmas da escritura e desempenho do cantar caipira. Ei-lo aqui. Dedico-o aos amigos queridos Pedro Ganga, Dinorath do Valle, Alaor dos Santos, Guilhermo da la Cruz Coronado, Pedro Beretta Sant’Anna e Reinaldo Volpato, companheiros em muitos filmes, e que estiveram bem por perto neste mais novo. E a Boi Soberano, com sua fama de barbatão bandido, pela probabilidade de ter sido apenas um boi de lua, de ovo virado, como se diz, ou talvez meio sonso no temperamento do tipo “maluco-beleza”.
* * *

Procurei realizar um trabalho panorâmico sobre um tema bastan- te preciso: a Moda Caipira de raízes em sua razão estável, sedimentada. Utilizei-me de cerca de setecentos fonogramas. Seguindo rigorosa- mente os conselhos do mestre Umberto Eco,2 me pus a enfocar quatro decênios dessa manifestação oral-popular, nos pontos que me pareceram mais sensíveis para sua interpretação, na veiculação em
1Atitude reflexiva no texto “Borges y Yo”, inEl Ha cedor, de Jorge Luís Borges.
2Eco, Humberto.Como se Faz uma Tese. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
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disco.3Há escassa bibliografia sobre o assunto. Este Ensaio serviria, então, com humildade científica, como ponta de lança para aborda- gens mais específicas, e certamente mais aprofundadas que as mi- nhas. Nas trilhas da Nova História, e realçando “aparentes banalida- des” que expliquem o conteúdo implícito no cantar caipira, adoto a estratégia da informação insinuante, e análises com muitos lances estilísticos de evocatividade. O texto está estruturado no sentido de estimular a imaginação. Visa a alcançar uma funcionalidade formativa e educadora. Sem imaginação, ensina Herbert Read, o camarada tor- na-se incapaz de utilizar criativamente o que leu.4 Embora os onze capítulos tratem de temas específicos, abordam com ênfase, mas in- diretamente, fenômenos e procedimentos literários periféricos, mas igualmente importantes. Este método prejudica a leitura aleatória, por tópicos sumários. Os capítulos se relacionam pela interconexão das informações vinculadas. A leitura, pois, deve seguir a linha seqüencial das fases de construção do texto. No interior dessas fases acontecerão novas formulações pela propagação e até reformulação de argumentos. De cabo a rabo, o trabalho visa a conceituar, com o leitor, o regionalismo da Moda Caipira. Entendo que, nos assuntos relacio- nados ao significado latejante da arte, é recomendável trabalhar com
conceitos, mais que com definições. Essa abordagem se articula em pe-

quenas repetições e fragmentos da mesma idéia, sempre impulsiona- dos por pelo menos dois acréscimos. Assim, o leitor pode ter im- pressão de estar patinando nos eitos do mesmo assunto, revisitando a mesma paisagem. É quando, a meu ver, a estratégia analítica do texto começa a funcionar. O que era periférico atinge o primeiro plano da atenção. Este Ensaio contém, propositadamente, uma estruturação provocativa de montagem.
Este trabalho enfocará o tempo todo questões relacionadas à
tradição, enfatizando a expressão de raízes. Simone Weil, ao referir-se
ao conceito de enraizamento escreve que “o ser humano tem sua raiz
3Usarei neste trabalho transcrições em LPs, principalmente da Colúmbia/

Continental, que funcionou entre 1929 e 1993, e da Chantecler, atuante entre 1958 e 1976. Alguns originais analisados são remasterizações de gravações em 78rpm editados em CDs pela Chantecler/Warner Music do Brasil, a partir de 1994.
4 READ, Herbert. A Redenção do Robô: Meu Encontro com a Educação através da
Arte. p. 62.
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por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletivi- dade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressen- timentos do futuro”.5 Assim, embora discurso fechado em seu uni- verso lingüístico, não há como entender a Moda Caipira de raízes fora de seu mundo societário e separada da função performática retro- alimentada pelo auditório. Este valor interativo, do qual o fonograma se faz simulacro, lhe é vital. Então, penso, por que não tentar aproxi- mar, no registro discursivo do Ensaio, ele-mesmo e o leitor, à própria natureza do objeto de estudo e análise? Para tanto, tive como méto- do retórico bombardear informações, aparentemente não-coesivas, usar formulações elípticas e fragmentárias, no instante mesmo da conjunção de frases e períodos, para que essas informações se fossem ajuntando na recepção, de modo a conduzir o leitor, por vias indutivas, a estabelecer sua própria opinião. Diria um chinês que um texto assim concebido o ensinaria a pescar. E a fisgar comigo os sentidos poéticos por méritos não só meus.

Ao dar cuidado à poesia popular, procurei não me colocar na defensiva, como alguém quixotesco que se põe a lutar contra a ilusão de moinhos de vento, a defender a causa perdida de uma manifesta- ção que parece não ser reconhecida como arte literária. Quero exprimir que me seria mais cômodo tratar de uma expressão tradicionalmente vista comoartística. A dificuldade seria firmar-me no meio relativo das discussões, caminhar no aceiro de outros, erguer o pescoço com respaldos e anjos-da-guarda de todos os lados a me protegerem.

Estas são as regras, o campo e as partituras do jogo, na “demo- cracia” e estratégia deste livro. Se serão eficientes e felizes como discur- so que se pretende esclarecedor na grande área das humanidades, e entre as letras em geral e as artes, só poderá dizê-lo o veredicto dos juízes-leitores, neste e noutros tempos.
* * *

O que me fez aproximar da pintura ingênua, do etnotexto e primitivismo da Moda Caipira e seus afluentes, da arte e literatura oral-popular com seu linguajar crioulizado do português brasileiro, primeiro foi a vivência bem de perto, a freqüentar meu ânimo desde criança. Isto levou-me a empreender o esforço deste livro. Meu pai,
5 WEIL, Simone. A Condição Operária e Outros Estudos sobre a Opressão, p. 317.
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cuja graça é Benedicto Ricci Sant’Anna, pedreiro de talho campônio, ex-palhaço de Santo Reis e que arranhava violarias (a viola, o violão e o cavaquinho), me levava aos auditórios caboclos em todas as manhãs de domingo; nos dias de semana me acordava de madrugada com as modas e o falar molengo, afeiçoado e gostoso dos apresentadores de rádio. O prefixo infalível eram toadas e valsas dolentes e amargura- das: Tristezas do Jeca, Saudades de Matão... A Moda chegava em casa bem cedinho, junto com o passo ermo do leiteiro, e misturava ao canto dos passos-pretos de gaiola, em cheiros de café. Só muito tempo depois fui descobrir a força dos símbolos elementares, atinar alguns dos significados de gênio (ingenuum) e, por conseqüência, a sublimida- de da arte como um todo. Neste trabalho, narcisicamente, reverencio meu próprio início. Segundo, ancorado no hoje, foi um certo desa- pontamento com relação ao desapreço de alguns setores situados entre as elites integradas, onde pairam os comandos ideológicos, os quais não só desacatam, como tripudiam sobre tudo o que provém do despossuído povo – a imensa maioria da população brasileira. Em certos casos, não o têm com seriedade ou, antes, fazem-lhe a guerra de desfeitas e caçoadas. Ao mesmo tempo, festejam o que se faz no estrangeiro, não se importando se o que lá realizam, entre os seus coetâneos, seja uma espécie de “arte caipira” ou sobre “o caipira” da terra lá dos outros. Somente para citar alguns artistas contemporâ- neos de índole latina, que tal, só de maravilha,Amarcord (1973) de Federico Fellini, ou uma de suas gêneses suburbanas em As Noites de
Cabíria(Le Notti di Cabiria,1957); que tal Le Novelle per un Anno, escri-

tas por Pirandello pela vida afora, deixando expressar-se aquela gente do Sul, siciliana, em sua ingênua graça, absoluta carência material e grandeza interior. Que tal a candura ingênua de um pescador em seu mundo ágrafo, semi-alfabético, a ministrar lições de vida e poesia a um poeta Pablo Neruda no filme sensível de Michael Radford,O
Carteiro e o Poeta(Il Postino, 1994)? Será que a distância, a outra língua,

a ilusão das cochinchinas distantes e misteriosas, das aracatacas sono- ras e inspiradoras, nos levam a fantasiar um ser ideal, abstraído do espaço e temporalidade, para aceitá-lo como criatura na arte? E, sendo assim, o caipira se impõe como por demais concreto, corporal e orgâ- nico para freqüentar a nossa imaginação criativa? E o camponês pé- duro (que é muito a nossa face escondida), desmascarado demais para desfrutar a primazia da arte? Ou seria desapreço mesmo ao caipi-
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ROMILDO SANT’ANNA

ra, mero resquício de comportamento em país colonizado? Aceitan- do-se que a chamada arte erudita é uma superação encalacrada na cultura e arte do povo, que tal as tragédias aldeãs de Lorca e seus poemas andaluzesdel cante-jondo; que tal algumas telas de Picasso, poemas de Pessoa, filmes dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani. Ou o exuberante e genial Grande Ser tão: Ver edas e demais sagaranas de Gui- marães Rosa que, por ser artista internacionalmente reconhecido, suas criaturas não sejam sentidas por nós como caipiras? Que tal a beleza incomparável deDon Segundo Sombra de Güiraldes, as palavras pantaneiras de Manuel da Barros, a delicada poética de Martí, os con- tos gauchescos dos seres rústicos de Borges, a saga tropicalista da Cara- vana Rolidei, emBye, Bye Brasil (1989), a cor nativista de Glauber Rocha, o caipirismo pau-brasil de Tarsila do Amaral; que tal a música de Manuel de Falla, de Heitor Villa-Lobos, ou a canção de Víctor Jara, as redondilhas e telas a óleo de Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui, Renato Teixeira e Mílton Nascimento... Que tal Pena Branca e Xavantinho, Roberto Nunes Corrêa, Zé Gomes, Ivan Vilela, Pereira da Viola... artistas chiques de um sertão calado? Nestes artistas e obras, quem fala é uma voz solidária e identificada com o dialeto, com as leis, gramáticas e costumes de aldeias e lugarejos, com a beleza inefável da simplicidade e do ingênuo. São obras e artistas tão fáceis que ficam difíceis. Mas, como escreve Mário de Andrade, no Lundu do
Escritor Difícil, “é só tirar a cortina que entra luz nesta escurez... todo

difícil é fácil, abasta a gente saber!” (A Costela do Grão Cão). Têm que ser percebidos com olhares e ouvidos ternos da afetividade e apurado senso de penetração cultural e artística. Tudo considerado de um jeito como se a voz do povo, em suas linhas tortas, fosse mesmo a voz de Deus. E a vida dominada por estranhos sortilégios. Essa graça, bele- za e construtividade perpassam a fortuna de aguçados saberes e a construtividade sensível da Moda Caipira de raízes. Moda de Raízes, textura e cor do inhame, que lembra mantimento ameríndio... O direito do anzol é ser torto, dizemos, o caipira. Ajudar a tentar mover esta cortina foi um dos propósitos essenciais deste Ensaio. Cito uns versos de Sérgio Sá e Leci Strada:
Por que as pessoas,
Que diziam ter cultura,
Não percebiam a doçura
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Da toada tão singela?
É que o caipira,
Vivendo na natureza,
Percebe mais sua beleza
Do que lendo sobre ela.
(Cezar &Paulinho, 1992.)

Na organização social brasileira em que os códigos valorativos da cultura e da arte se compõem de uma gangorra pendendo quase sempre para o adventício, formam-se “leis de mercado cultural” e a elas, se quiser algum respaldodas alturas, deve-se submeter o artista. Se é questão de mercado e seus insumos, é matéria de economistas, assunto para omarketing cultural. No entanto, faz muito mal o estu- dioso da cultura e da arte em comodamente lavar as suas mãos, deixando tudo como está para ver futuramente como é que fica. Alguns centros metropolitanos de nosso país, mormente os de mai- or influência, se transformaram numa mixórdia na qual eles próprios não se reconhecem culturalmente. Há neles um embrulhamento de épocas e lugares. A “modernidade globalizada” impôs uma ruptura desconcertante com as bases de previsão, provocando severa descontinuidade na linha da cultura. Fala-se tanto em “globalização da economia”, imbutindo-se nessa despatriação a idéia avançada e ao mesmo tempo retrospectiva de edificação de um “burgo global”. a produzir vulgaridades em escala industrial. De olho no controle ide- ológico da sociedade e na mercadoria, os meios de comunicação ensi- nam o de que se deve gostar e o que desprezar, enfeitando uns e satanizando outros.
* * *

Coloca-se uma indagação: é possível manter a especificidade cul- tural de um povo tão alijado do “desenvolvimento” concebido pelas elites econômicas, sendo estas comprometidas com a globalização neoliberal e seus interesses multinacionais? Parece que a produção de uma cultura transnacional, feita de uma colcha de fragmentos para se fazer omnipresente, corta em direções transversas a identidade con- tingente, ligada à sabedoria fundamental e mítica enraizada na Terra- mãe. Há no ar uma modernização autoritária, resídua do ideário con- cebido pela Ditadura Militar. Registra-se no Brasil uma contradição
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ROMILDO SANT’ANNA

entre a linguagem escrita e a oral, entre a cultura citadina e a rural, entre o estrangeiro e o nacional, entre o rico e o pobre, entre a história oficial cunhada pelo vencedor e a história do vencido, com a hegemonia dos primeiros sobre os últimos, sob o amparo do legalismo oficial. A começar pelos constituintes de ordem lingüística, instaura-se a clara divisão de exclusividade da cadeia dominante, representada pelo tope burguês, sobre a maioria dos falantes, discriminada em sua cultura, linguagem e arte. Até bem pouco tempo os iletrados sequem tinham o direito civil de escolher governantes; décadas atrás esse era o direito só dos ricos. Essa maioria marginalizada provém das correntes mi- gratórias em que o elo desengatado foram as zonas rurais. Indícios evidentes demonstram que se fizeram consuetudinárias a impunida- de, aimpunibilidade e a iniqüidade, pelas vantagens das oligarquias rurais e urbanas sobre as aspirações do trabalhador comum. Vale lembrar que, em 1990, a força de trabalho brasileira tem um nível educacional médio de apenas três anos e meio. A baixa escolaridade se associa à ausência de consciência de cidadania da população, no nível individual e corporativo de seus direitos sociais. Penso que disto provêm os índices brutais e consternadores verificados nos inícios de 1990: 24 milhões de brasileiros, ou 17,4% da população, estão viven- do abaixo da linha de pobreza, segundo dados publicados pelo Ban- co Mundial. Isto atinge frontalmente a cultura e a arte do povo, relegadas a condições inferiores no contexto nacional. A esses núme- ros, para a transformação ocorrida na literatura popular de antiga procedência e o aparente quase desaparecimento da Moda Caipira de raízes, concorrem decisivamente os resultados do descontrolado êxodo das populações caipiras para regiões metropolitanas, no sonho do bem-estar ou estratégia de sobrevivência. Mas, como escreveu Lobato, quem sai de seu lugar é como bicho de goiaba fora da goiaba.6, ou seja, leva uma vida sem gosto, desenraizada. Índices divulgados pelo IBGE informam que, na região Sudeste, onde ela se expressa com maior intensidade, 60,6% da população viviam nas zonas rurais em 1940; em 1980, 82,7% vivem nas cidades. Não por coincidência, os idos de 1940 representam o auge da Moda Caipira de Raízes; os de 1980, o apogeu da chamada Jovem Música Sertaneja, fruto da moda caipira de raízes, engendrada pela indústria de entretenimento,
6LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre (Correspondência, 1944).
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cia; o verso e meio, chama de sextilha; o verso dobrado, de oitava. Escrever modas avioladas é trovar; poeta dos bons é folgazão, é cantador-campeão...Soccer, de que se ouviu falar muito na Copa do Mundo de 1994, continua sendo o velho futibóli, o arranca-toco... Baile é o mesmo que pagode, isto todo mundo da roça já sabe; só que baile não vem a ser baile, é esfregação. Até parece Dança de São Gon- çalo, com suas licenciosidades eróticas, umbigadas excitantes, contu- do, bem entendido, com as bênçãos do santo. Pagode é pagode mes- mo, rito de festa e encontro, com muito respeito...

Finalizando, quero exprimir mais um sentimento: presencio na sociedade esclarecida uma mobilidade de seus aparatos valorativos, uma inconstância e fragilidade no horizonte interpretativo das rela- ções éticas e da arte, uma conveniência retórica meio leviana e regressi- va, afetando positivamente algumas áreas e prejudicando outras. Essa atitude parece revelar um certo “oportunismo da conciliação”, decerto proveniente da “política de resultados”, muito em voga hoje em dia. Esse encaminhamento tramita em paralelo com o pacto moral que sempre interligou a classe civil economicamente dominadora com os mecanismos institucionais de dominação, situados nas esferas legislativa, judiciária e executiva do poder colonial, imperial e republi- cano... Ela tem agido, penso, como abonadora e legitimadora de uma ilusão: a conciliação fortuita com o irreconciliável.

Quanto mais se vive nas cidades maiores, mais escassas vão fican- do algumas validades: tradições, solidariedade, afetividade vicinal... bens espirituais. Nas grandes cidades esses atributos flutuam rente ao chão e por eles se transita como na pressa dos tapetes voadores. No mundo rural, são mais persistentes estes valores. A Literatura Oral-popular e sua vertente caipira impõem, de certo modo, o realce das diferenças entre omundo rápido e administrado, de que o beletrismo se faz representante, e o mundo das vivências e expressões espontâneas. Em conseqüência, este segundo, desintegrado numa sociedade que lhe reserva posição marginal, goza de um certo sossego para ser vivenciado como o que vive “à margem”: não necessita de rezar o catecismo oficiador. Em geral, o caipira não mistifica nem se seduz pelo que não compreende. Por isso, passa ao largo das “profundezas herméticas” das teses doutas. Sua relatividade é mais elástica. Disse-me o octogenário pintor primitivo José Antônio da Silva, com ares de
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ensinamento proverbial: A ciência é infalível, mas tem as suas falhas. Também por esses paradoxos de uma ingenuidade estonteante, pa- recendo frutos de uma árvore original, prevalece no cantar caipira a riqueza de um despojamento sedutor e de grande interesse investigativo. Realizei este trabalho em respeito e admiração à arte e voz da população marginalizada. Como reconhece o violeiro e pes- quisador de campo Roberto Nunes Corrêa, em contatos que tive- mos, as variações em torno da viola brasileira são tão grandes e pro- fundas que formam um campo misterioso impossível de ser pene- trado pelo estudioso comum. Este trabalho percorre apenas um eito, parte do mundo dos violeiros aclamados e que chegaram às gravações elétricas. Para minha frustração, não registra a voz cheia da graça dos enjeitados e anônimos deste país que – tenho a convicção – têm de tudo a nos instruir e a nos ensinar a entrar nos trilhos. Evoé, volte- mos à diligência de Truffaut!
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II – CONFIGURAÇÃO
DO CANTAR CAIPIRA
1. O ROMANCEIRO TRADICIONAL
E SUA EXTENSÃO NA MODA CAIPIRA

O ser humano está no mundo e a todo momento olha para si. Sempre foi assim e talvez seja a nós mesmos o que mais tentamos enxergar. Esse olhar para dentro seria a nascente mais límpida da arte. No entanto, como um paradoxo, Literatura Popular nem é Literatura, uns afirmam desdenhosamente. Ela faz da existência matuta objeto de seu artifício, não se importando com a caligrafia, rigores e floreios artesanais germinados no misterioso mundo da escrita. Seu linguajar é cru e direto, diferente da “fala cozida”, no vislumbre antropológico de Levy-Strauss. Como um rio, propaga- se em paralelo aos padrões dominantes de cultura, vinculados às chamadas elites. Essas, muitas vezes, reconhecem valor literário apenas na estabilidade do objeto escrito, calcado no veículo institucional do livro. Alguns defendem, ao pé da letra, a etimologia de Literatura, e se servem desta para defini-la. Provém delittera, asseveram, que pressupõe o primado documental da letra de for- ma, seus ornatos e construção ideográfica. Enquantoa c a d êmi c os, com seus paradigmas etiquetados, acatam o presente com os olhos nas regras dop a s s a d o, os que flutuam na onda damo d e r n i d a d e comumente colocam o mundo no foco nofuturo, decorrente das borbulhas do presente, a rejeitar os estalões do outrora. Com os olhos no lá de fora, parecem arredios ao agora nacional como está aí, pulsante e coloquial.
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Contando lendas sedimentadas pelo tempo e projetando mitos de uma mudividência longínqua, o designado “inconsciente coleti- vo”, é nessa faixa quase invisível que se incrementam as fontes literá- rias orais-populares, na curtição e vivência dopresente e alheias aos embates e conflitos das mesmas elites. E assim sendo, o fazer literá- rio do povo se vê rotulado de subliteratura, paraliteratura, contraliteratura,7 a situar-se no lado abaixo dos horizontes e frontei- ras do discurso chamado oficialmente de literário. Expressão oral, ou o oral escriturado não raro em cadernetas garranchadas, e quase sem- pre complementado pelos movimentos do corpo, na voz alta e ou- tras atitudes corporais dos intérpretes, faz da cultura do povo8 seu cimento de identidade ou re-conhecimento. Em reação a esta, signi- ficativa porção de aparatos sociais eruditos manifesta profundo pre- conceito e formidável desapreço. Proclamando-se democratas, pouco lhes interessa que seja a produção artística da maioria! No entanto, é a literatura que precede os livros, e tantas vezes os substitui; não são vozes que habitam presas dentro de brochuras mas, vivas e impelidas, escalam os tempos com a tonalidade e o calor de um presente em transformação. A solidez da letra escrita ostenta um peso que a faz lenta, se comparada com a dinâmica adaptativa da palavra falada, prin- cipalmente a que voa adornada pela música. Na era atual, este é o dizer literário que muitos escondem, guardando-o apenas consigo, caute- losos ou envergonhados dos modos antigos presos na tradição. Num belo dia viemos da roça ou de sua extensão nalgum lugarejo e, liga- dos à correnteza familiar, fomos viver num desses arrabaldes brasilei- ros.No rol da Literatura Popular de antiga procedência, e seu extenso
inventário cultural, configuram-se dos “causos” de reis e príncipes,
que ainda são contados nos recantos afastados dos grandes centros,
7As implicações terminológicas e conceituais de Literatura Popular e suas

configurações como objeto de análise literária encontram-se firmadas exaus- tivamente no excelente artigo “Dez Anos de Pesquisas em Literaturas Popu- lares: O Estado da Pesquisa Visto de Limoges”, de Jacques Migozzi. In: BERND, Zilá e MIGOZZI, Jacques (Orgs.)Fr o n t e i r a s d o Li t e r á r i o: Literatura Oral e Popu- lar Brasil/França, , p. 11-30. Seguiremos neste trabalho a conceituação tradici- onal do termo.
8 Arnold Hauser refere-se às culturas de elite, do povo e para o povo em suaHistória
Social da Literatura e da Arte - I, p. 125 e ss.
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aos cânticos entoados na viola; dos autos populares, teatros de circo e poesias recitadas, aos romances populares em verso e prosa – pro- duzidos por gente do povo, artistas espontâneos anônimos ou não, caligráficos ou não – e outras formas verbais de manifestações não necessariamente veiculadas em livro. Esses artistas produzem entre- tenimento, informação, persuasão e prazer artístico. Grandíssimos escritores reconhecidos como tais, no curso dos tempos, produziram genuína poesia popular, em prosa e verso. Fatos exteriores relaciona- dos com anatureza etnológica dessa literatura ditaram aceitação nor- mal desses artistas, no rol daqueles estimados como “letrados” ou “eruditos”. Lígia Chiappini Moraes Leite escreve que “se isso é um fato, também parece verdade que regionalismo está sento entendido aí como uma restrição qualitativa que, no limite, invalida conceitualmente a própria categoria, pois tudo poderia resumir-se à seguinte fórmula: quando a obra não atinge um certo padrão de qualidade que a torna digna de figurar entre os grandes nomes da literatura nacional, ela é regionalista; quando, pelo contrário, se conse- gue atingir esse padrão ela não seria mais regionalista, seria uma obra da literatura nacional, reconhecida nacionalmente e, até mesmo candidata, como é o caso de Guimarães Rosa, a um reconhecimento supranacional, para não dizer universal”.9

O sistema operacional da Literatura Popular de antiga procedência compreende o entrelaçamento de diversos códigos que se agrupam em palavras e sinais paraverbais, extraverbais e os signos literários verbalmente realizados. Há uma sucessão superposta de modos de exprimir para formar um campo homogêneo de significação. Mobili- za e rebrota uma área de conceitos que se situa numa zona de afinida- des primitivas: a música, o canto e o agrafismo da palavra memoriza- da. Realizando-se como ato performático, portanto um processo ver- bo-motor de mensagem em situação, pressupõe além da sonoridade poemática-musical, na maioria das vezes, o uso expressivo do espaço e da gestualidade, a motricidade do corpo e seu ritmo e, por que não?, o uso expressivo do silêncio; pressupõe, em seqüência, a potencialização dada pela interatividade cantador/ouvinte na mensa- gem em situação ou como se fosse. Vítor Manuel de Aguiar e Silva
9“Velha Praga? Regionalismo literário brasileiro.” In: PIZARRO, Ana. (Org.)
América Latina: Palavra, Literatura e Cultura – II, v.2, p. 699.
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anota o entrelaçamento dos seguintes urdimentos expressivos: o
código musical, porque a literatura oral-popular geralmente é cantada

ou entoada; o código cinésico, que se expressa nos movimentos rítmi- cos do cantador, na função ou desempenho ao vivo; ocódigo pr oxêmico, que se expressa nas relações geográficas entre as coisas e os seres, e o processo da oralidade; o código paralingüístico, que expressa os fatores vocais, supra-segmentais (entonação, timbre, por exemplo) que acom- panham a emissão dos signos verbais puros.10

Vincada pelas tradições e tendo suas matrizes genealógicas situa- das no fundo peninsular da Idade Média, a Literatura Popular de antiga procedência não pode ser entendida como matéria estática, guardiã do atraso. Como outras manifestações autênticas das cama- das marginalizadas, que têm um sentido de persistência ligado ao beira-chão, está sujeita a transformações pelas adaptações ao meio, pelos retoques imaginativos e transfiguradores, num contínuo pro- cesso de reelaboração comunal: quem a modifica são as gerações de cantadores e ouvintes. O relato oral, esclarece o argentino Adolfo Colombres, “é móvel, o que impede seu esclerosamento. Diferente do livro, não caduca: se transforma. É um meio de transmissão de conhecimentos que em maior ou menor grau veicula uma carga sub- jetiva que inclui os fermentos que permite ao mito modificar de más- cara, responder às novas situações”.11 Sua principal característica per- siste na oralidade – ressalta Câmara Cascudo. Neste sentido, duas fontes contínuas a mantêm viva, assevera o mestre potiguar, “uma exclusivamente oral, resume-se na estória, no canto popular e tradici- onal, nas danças de roda, danças cantadas, danças de divertimento coletivo, rondas e jogos infantis, cantigas de embalar (acalantos), nas estrofes das velhas xácaras e romances portugueses com solfas, nas músicas anônimas, nos aboios, anedotas, adivinhações, lendas, etc. A outra fonte é a reimpressão de antigos livrinhos, vindos de Espanha ou de Portugal e que são convergências de motivos literários dos séculos XIII, XIV, XV, XVI..., além da produção contemporânea pelos antigos processos de versificação popularizada, fixando assun-
10AGUIAR E SILVA,Vítor Manuel de.Te oria da Li teratura, p. 138-139.
11“Palabra y Artificio: Las Literaturas ‘Bárbaras’”, de Adolfo Colombres. In:
PIZARRO, Ana (Org.)América Latina: Palavra, Literatura e Cultura – III, p. 139.
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tos da época, guerras, política, sátira, estórias de animais, fábulas, ciclo do gado, caça, amores, incluindo a poetização de trechos de romances famosos tornados conhecidos, Escrava Isaura, Romeu e Julieta, ou mes- mo criações no gênero sentimental, com o aproveitamento de cenas ou períodos de outros folhetos esquecidos em seu conjunto”.12Os romancesIracema,Ubirajara eA Viuvinha de José de Alencar viraram folhetos famosos. Vários autores dão conta de que o folhetoA
Donzela Que Foi à Guerra, que circula de boca em boca em vários esta-

dos do Nordeste, foi a fonte de inspiração à personagem Diadorim, noGrande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. No entanto, quando o escritor popular João Martins de Athayde escreve o folheto Amor de
Perdição, apropriando-se de Camilo Castelo Branco, é preciso enten-

der que nada mais faz que resgatar de um romance prosificado aquilo que, em parte, fora apropriado da tradição. Reescreve a mesma fábula em redondilhas e, em sua forma adequada ao saboreio popular, a devolve ao antigo dono: o povo.

Evidenciada pela memória afetiva latente, e muito próxima da ideologia rural e suburbana, a Literatura Popular, no realismo ex- pressivo do cotidiano, manifesta-se “na língua errada do povo, lín- gua certa do povo, porque ele é que fala gostoso o português do Brasil” – segundo a Evocação do Recife de Manuel Bandeira. Rolan- do, saltando, arrastando-se de boca em boca, como um rio, de gera- ção a geração, enfrentando o poder dissolvente do tempo, não se lhe podem ignorar a autenticidade e a fina malícia construtiva. Es- creve o poeta Haroldo de Campos, em seu deslindar singelo do artista popular e sua arte:

Suando como um shamisem, e feito apenas com um arame tenso, um cabo e uma lata velha, num fim de festafeira, no pino do sol à pino. Mas para outros não existia aquela música. Não podia porque não podia. Po- pular aquela música? Se não cantam, não é popular. Se não afina, não tintina, não tarantina... E no entanto, puxada na tripa da miséria, na tripa tensa da mais megera miséria
12Literatura Oral no Brasil, p. 22. Câmara Cascudo não inclui a Literatura Popular

na classificação “folclórica”, pois “uma produção, canto, dança, anedota, con- to, que possa ser localizada no tempo, será um documento, um índice de atividade intelectual”, p. 23.

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