Origem da plavra Caipira

Baseado na Grande Reportagem “Os Rumos da Música Caipira no Vale do Paraíba”, de Anderson Borba Ciola e Fábio Cecílio Alba, a origem da palavra caipira ainda é motivo de controvérsias. Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luiz Câmara Cascudo, a palavra significa “homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. Habitante do interior, tímido e desajeitado...”. Robert W. Shirley, em seu livro “O fim de uma tradição”, critica a posição de Câmara Cascudo, dizendo que: “Esta definição em si mesma, revela a extensão da grande lacuna social entre os escritores urbanos e os camponeses, pois, de fato, o caipira tem uma cultura distintiva e elaborada, rica em seus próprios valores, organizações e tradições”. Já no Dicionário Aurélio é encontrada a seguinte definição: “Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos”. Cornélio Pires, jornalista e violeiro, em seu livro “Conversas ao pé do fogo” define a palavra caipira da seguinte forma: “Por mais que rebusque o étimo de caipira, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi-guarani capiâbiguâara. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto, neste caso temos a raiz ‘caí’, que quer dizer gesto de macaco ocultando o rosto. Capipiara, que quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do mato, faz lembrar o capiau mineiro. Caapiára quer dizer lavrador e o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último o mais aceitável, pois caipira quer dizer roceiro, isto é, lavrador...”.

19.7.11

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romance antigo, narra literariamente o acontecido, conta uma his-
tória.
* * *

Pesquisa realizada por Osvaldo Luís Barison49revela as dez prin- cipais modas caipiras gravadas em disco, na opinião das populações geralmente interioranas do Sudeste e Centro-Oeste brasileiro. São elas, em ordem de preferência:Menino da Porteira (Cururu - Teddy Vieira-Luizinho), Cabocla Teresa (Toada histórica - Raul Torres-João Pacífico), Chico Mineir o (Toada - Tinoco-Francisco Ribeiro), Chico Mu-
lato(Toada histórica - Tor res-Pacífico), Canoeiro(Cur ur u - Alocim-Zé
Carreiro), Boi Soberano (Moda-de-Viola - Carreirinho-Izaltino de Paula),
Pagode em Brasília (Pagode de Viola - Teddy Vieira-Lourival dos San-

tos),Pingo D’água (Toada - Torres-Pacífico),Mágoa de Boiadeir o (Toada - Nonô Basílio-Índio Vago) eFe r r e i r i n h a (Moda-de-Viola - Carreirinho).

São pioneiros da Moda Caipira em disco os artistas: Bico Doce (pseudônimo de Raul Torres [Raul Montes Torres, Botucatu – SP, 1906-1970]), Caipirada Barretense, Mariano e Caçula, Olegário e Lourenço, Maracajá (pseudônimo de Roque Ricciardi [1874-1976], que é o Paraguaçu) e os Bandeirantes, Alvarenga e Ranchinho, Foliões do Zé Messias, Paraguaçu e Sebastiãozinho e próprio Cornélio Pires – lançados em três anos, a partir de 1929, nos 52 discos de 78 rotações da Turma Cornélio Pires, e gravados na Columbia –, e Torres e Florêncio, Zico Dias e Ferrinho, Serrinha e Caboclinho – que, no eito de sucesso de Pires, formaram aTu r ma
Caipira Victor.
49Moda Caipira: Cantador, Universo, Mediações e Participação Emotiva.Dissertação
de Mestrado [orientador: Romildo Sant’Anna], 1994.
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ROMILDO SANT’ANNA

Ilustração n .3–Jorginho do Sertão, de Cornélio Pires, primeira moda-de- viola gravada, em outubro de 1929. Disco nº 20006/B (série Regional numerada a partir do número 20000, tiragem independente realizada sob o patrocínio do autor). No lado “A” registram-se Como cantam algumas aves,
imitações de aves. Original gentilmente cedido pelo historiador Agostinho
Brandi, São José do Rio Preto.
* * *

Além do campo reconhecido como “poesia séria”, a Moda Caipi- ra registra também as Canti gas de Pat acoadas, ou de chacotas, as quais, pelo tom anedótico, instigante e descabido, fazem muito o gosto da cidade e do campo. Um dos principais autores desse gênero tradicio- nal é Raul Torres, como se observa nas seguintes passagens de Festa
da Bicharada (1936), em parceria com o poeta João Pacífico (João
Baptista da Silva, Cordeirópolis-SP, 1909-1998), e Futebol dos Bichos
(1933):
FESTA DA BICHARADA
moda-de-viola
Raul Torres e João Pacífico
Fui dançá co’a bicharada

Passei meio apertadão, A onça tinha uma filha Delicada de feição.
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No dia do casamento
Fizero grande reunião,
E pra não misturá raça
Fez casá com primo-irmão...
(Torres e Pacífico,Re vi vendo, 1994.)
FUTEBOL DOS BICHOS
cateretê
Raul Torres
O jogo do futebol

É um jogo muito falado, É um jogo muito bonito E bastante admirado.

Lá no bairro adonde eu moro Pois formaro um combinado: O time do Quebra-Dedo
Com o time do Pé-rapado.
O time do Quebra-Dedo
Tava bem reforçadão:
Tatu jogava no gol,
Beque de espera, o Leão,
O Sapo, beque de avanço,
Halfo-esquerdo era o preá,
Center-halfo era o viado,
Halfo-direito, o gambá...
(Torres e seu Conjunto,Revivendo, 1994.)

A visão reflexa do caipira, fazendo troças e chalaças com o viver na capital, segundo é anunciado antes dos primeiros acordes da viola, já se encontra numa das primeiras modas-de-viola gravadas. Trata-se de
Bonde Camarão,disco de selo vermelho nº 20015, gravação realizada

em 1929 na Columbia do Brasil (Byington & Company) pelos ir- mãos Mariano da Silva e Rubens da Silva, a dupla Mariano e Caçula. Esta é a primeira estrofe:
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ROMILDO SANT’ANNA
BONDE CAMARÃO
moda-de-violaCornélio Pires / Mariano da Silva

Aqui em São Paulo
O que mais me amola
É esses bonde que nem gaiola,
Cheguei, abriro uma portinhola,
Levei um tranco e quebrei a viola!
Inda puis dinhero na caxa da esmola!
(Mariano e Caçula. Nova História da Música
Popular Brasileira,1978.)

As Cantigas de Patacoadas, ainda que com um certo histrionismo, revelam uma aproximação com a sátira literária de todas as épocas e, em especial, com o lado cômico, satírico e maluco de românticos como Laurindo Rabelo, Bernardo Guimarães e Ál- vares de Azevedo50 e, no decênio de 1920, o caipirismo macarrônico e jornalístico de Juó Bananére (Alexandre Ribeiro Marcondes Ma- chado, 1892-1933). O tom jocoso e burlesco de suas letras muitas vezes se exprime através da paródia. Os personagens são “desenha- dos” de modo a aproximá-los da representação plástica da caricatu- ra jornalística. Obras satíricas, promovem a antropoformização do bicho e a zooformização do personagem. Muito freqüentes os ape- los zoomórficos, não raro fazem alusões a indivíduos e instituições de grande visibilidade social em suas épocas, principalmente as dé- cadas de 1930 a 1960. Também de modo satírico, os ciúmes, as intrigas, os diz-que-diz-que dos políticos e seus atos são transfor- mados em balelas e gozações. Contam com imediata e plenária aprovação dos ouvintes, num sonho de insurreição e culto à vindita aos estratos sociais e institucionais superiores. Como é usual na sátira e nos processos fabulares – estou pensando na Fábula como gênero –, lançam-se para dentro do texto elementos humanos e situacionais extraídos da realidade, tais como eles pontificam,in
50Ver sobre o assunto o ensaio Dialética da Malandragem de Antônio Cândi-
do, In:____. O Discurso e a Cidade, p. 18-54.
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natura, no contexto vigente. Para interpretá-los, no ambiente

caricatural dos versos, é necessário situá-los na circunstância prática da história. São expoentes desse gênero humorístico na Moda Cai- pira, noss ho ws ao vivo, no rádio e no disco, as duplas Jararaca e Ratinho, formada em 1927 (José Luís Rodrigues Calazans, o Jararaca - Maceió, 1896-1977, e Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho - Itabaiana-PB, 1896-1972) e Alvarenga e Ranchinho, formada em 1929 (Murillo Alvarenga - Itaúna-MG, 1912-1978, e Diéze dos An- jos Gaia, o Ranchinho - Jacareí-SP, 1913-1991).

Esse tom bem-humorado vamos encontrar nas primeiras mo- das gravadas em disco. EmJorginho do Sertão (1929), de Cornélio Pires, moda-de-viola que recebeu o número 20006-B da Série Regio- nal Cornélio Pires, a primeira quadrinha já prenuncia o anedótico de todo seu contexto: “O Jorginho do Sertão, / Rapazinho de talento, Numa carpa de café / Enjeitou três casamento”. Sobrepassando os tempos,N’a Moda da Pinga em gravação de 1953 de Inesita Barro- so, o registro vocabular segue o tom jocoso e de magnífica alu- são plástica:
MODA DA PINGA
moda-de-viola
Ochélsis Aguiar Laureano / Raul Torres
com estrofes de Paulo Vanzolini
(também reivindicada por Mariano, Nonô Basílio)

Com a marvada pinga é que eu atrapaio,
Eu entro na venda e já dô meu taio,
Eu pego no copo e dali não saio,
Ali mesmo eu bebo, ali mesmo eu caio.
Só pra carregá é que eu dô trabaio, oi, lá.
Venho da cidade, já venho cantano,
Trago um garrafão, que venho chupano,
Venho pros caminho, venho trupicano,
Chifrano os barranco, venho cambeteano.
E no lugar que eu caio, já fico roncano, oi, lá.
Cada vez que eu caio, caio deferente,
Meaço pá trás e caio pra frente,
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Caio devagar, caio de repente,
Vô de rodopio, vô deretamente.
Mas sendo de pinga, eu caio contente, oi, lá.
Pego o garrafão e já balanceio,
Que é pra mor de ver se tá mesmo cheio,
Não bebo de vez porque acho feio,
No primeiro gole chego inté no meio.
No segundo trago é que desfazeio, oi, lá...
* * *

A Moda Caipira de raízes é a arte do 78rpm, o velho disco pesa- do e quebrável de 78 rotações por minuto. Explico: escrevo que tal dupla gravou xis número de LPs. Por exemplo, a dupla Pedro Ben- to e Zé da Estrada (Joel Antunes Leme, Porto Feliz-SP, 1934- e Waldomiro de Oliveira, Botucatu-SP, 1930-) gravou mais de cem LPs em quarenta anos de carreira. Esse número altíssimo, na média anual, se explica pelas compilações dos 78rpm em LPs. Diferente- mente de hoje, nas décadas iniciais do disco os artistas tinham que ser grandes ídolos nas apresentações ao vivo, nosshows, nos circos e rádios,51 para terem acesso a gravações. Quando eram aceitos na gravadora, já possuíam elevado número de sucessos no repertório. Vieira e Vieirinha, por exemplo, quando lhes abriram as portas para o disco, em 1952, já eram idolatrados em vários programas de rádio e, em 1950, animaram os comícios de Getúlio Vargas na campanha à Presidência da República. Na estréia em disco, gravaram quatro 78rpm em um só dia. Com a oportunidade das gravações, o que as duplas faziam era registrar o sucesso tal como era apresentado ao vivo e testado na repercussão popular. Este fato leva a três conclu- sões fundamentais:
a) A moda composta e gravada em disco possui ares e
artimanhas formais e interpretativos da execução ao vivo;
51 A primeira emissora de rádio de São Paulo foi a Educadora Paulista, inaugurada
em 1923. No ano seguinte surgiu a Clube de São Paulo e, em 1927, a Rádio Cruzeiro
do Sul. Foram redatores dessas emissoras alguns poetas do Modernismo de 1922,
como Menotti del Picchia e Guilherme de Almeida, que valorizaram em
significativo espaço da programação o regionalismo da Moda Caipira.
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b) Os idos 1940 são o celeiro de sucessos da Moda Caipira
até hoje;

c) A era dolong-playing, a partir de 1951 no Brasil, é simu- lacro do disco em 78rpm: ou são transposições remasterizadas, no novo formato, das gravações originais, ou regravações da mesma moda.

É por isto que no primitivismo da Moda Caipira de raízes o acompanhamento de orquestra ou de instrumentos eletrônico soa como se ela estivesse ornada de uma maquiagem falsa. No disco, e sem prescindir da viola, a dupla se afina melhor com os instru- mentos acústicos, como nas apresentações ao vivo. É por isto que as velhas duplas, ainda hoje e em elepês, gravam cinco ou seis músicas novas, e o restante das doze ou catorze faixas são modas antigas; é por isto também que é difícil encontrarmos o “sucesso exclusivo” de tal dupla de violeiros. Como o disco é simulacro da peformance interativa e potencializada com os ouvintes, as duplas incluíam muitas das mesmas modas em seuss h o ws ou apresenta- ções radiofônicas. Em resultado, grandes sucessos comoFerreirinha,
Canoeiro, Rei do Gado, Herói sem Medalha, Menino da Porteira, Boi
Soberano... foram gravados por várias duplas que apareceram entre

1940 e 1950. Nos finais de 1980, com o aparecimento do CD (Compact Disc Digital Audio), repete-se o mesmo ciclo. No final de 1990 foram lançados onze CDs Dose Dupla (com dois elepês cada) de Tião Carreiro e Pardinho, mais outros três da série Som da Terra, todos pela gravadora Chantecler/Warner Music Brasil. São ramasterizações de elepês que, por sua vez, foram em boa parte ou regravações ou cópias de 78rpm de sucesso. Dona Nair Avanço Dias, viúva de Tião Carreiro, relatou-me que “nunca o Tião vendeu tanto como agora. E não é porque ele morreu e dá sensação de perda, mas porque o povo está valorizando mais a moda caipira”. Desta constatação conclui-se: a Moda Caipira de raízes, com suas “palavras estropiadas” e tão sertão, não sai de moda, não se exaure facilmente com o tempo, constituindo-se talvez, em seu conjunto, no maior fenômeno da mídia em discos, e com mais longevidade, na fortuna chamada Música Popular Bra- sileira. É raríssimo no Brasil um artista que, vivo ou ido, brasileiro ou estrangeiro, tenha lançado catorze CDs, no período de vinte e quatro meses, como é o caso do fenômeno Tião Carreiro e
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Pardinho. Na voz desses artistas se compendia outro romanceiro;
reverberam velhos e inusitados e renovados romances.
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2. CULTURA DE RAÍZES E ETNOTEXTO
Fazendo uma digressão conveniente a este estudo, quero menci-
onar alguns trechos de Vaz de Caminha, naCarta52 :

...E [Diogo Dias] levou consigo um gaiteiro com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles [os indígenas], to- mando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e anda- vam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como monteses, e foram-se para cima... Nesse dia enquanto andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. (...) E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar, aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente, esta gente é boa e de bela sim- plicidade.
Certamente a mais singela de quantas tenham sido produ-
zidas pela literatura ultramarina portuguesa da época, sendo
52 “Carta a El-Rei D. Manuel”, escrita do porto seguro de Vera Cruz, com
data de l.º de maio de 1500, em linguagem atualizada por Carolina Michaëlis
de Vasconcelos. In: CALMON, Pedro. História do Brasil - I, p. 64-83.
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emblematicamente uma das mais visionárias e enternecedoras de nos- sa literatura epistolar, a especulação sobre os dizeres da Carta pode ser ponto de partida para reflexões essenciais sobre a formação etnológica e cultural do país. Mesmo usando o paradigma difuso de uma concepção existencial ibérica, no último ano do Século XV, para anotar e interpretar a exuberância do tudo novo do Novo Mundo cabralino que despontava aos olhos navegantes e invasores, há que reconhecer na Car ta que, de suas observações, nascia algo de excepcio- nal para civilização: portugueses invasores e índios hospitaleiros se davam as mãos para dançar, cirandando, mais pela pureza latente dos nativos que pela predisposição lusa. Leve-se em conta que desembar- cava em Vera Cruz um contingente de homens sisudos, empanturrados de sombras medievais, de zangas seculares e, abrasa- dos pela cobiça, traziam as tensões provocadas pela imposição do modelo burguês renascentista. Essa turba invasora e aventureira não tinha outro objetivo – já que não viam a cobiçada pimenta das Índias – senão garimpar em cada arredor, com os olhos ávidos, por um tronco de brasil, uma pepita de ouro ou outra colheita que permitisse enriquecer e colorir depósitos, algibeiras e baús. Ao mesmo tempo lá estava, em porto seguro, a gaitinha de fole aldeã, o tamboril dos bailes de aldeia, a animarem a aspereza da saudade, num dançar sem enfeites, sem regras e sem mesuras, como se alguma coisa nova esti- vesse nascendo, ou então tão antiga, tão ancestral como o Mito da soltura de viver.

Relata o beato José de Anchieta, em 1584, como resultado de sua peregrinação religiosa-cultural, que os curumins das casas de ensino baianas já faziam “suas danças à portuguesa, com tamboris e violas [dou ênfase à viola], com muita graça, como se fossem meninos portugueses”.53Escreve Fernando Azevedo, citando Humberto Campos que “o português é jovial, festeiro, comunicati- vo; provam-no a alegria de seus vilarejos, e os seus folguedos cam- pestres em que predominam os bailados nacionais. E o nosso ín- dio não o era menos. As suas festas eram barulhentas, tumultuo- sas, e duravam dias, às vezes, semanas”. Quanto ao fato de o indí- gena brasileiro ser taciturno – continua Azevedo, com grande pene-
53Apud. TINHORÃO, José Ramos.Os Sons Negros no Brasil, p. 26-7.
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tração analítica: “ser taciturno não é ser triste. A taciturnidade é uma das características dos povos caçadores e torna-se um hábito pelas exigências da ocupação. O silêncio e a quietação não significam as- sim, tristeza pedregosa, que só pode vir do desgosto da vida. Os nossos silvícolas viviam satisfeitos de sua condição. E consideran- do-se instintivamente felizes, viviam alegres, mesmo porque triste- za, como nós a definimos, só pode nascer de um confronto de destinos, e da certeza de inferioridade, tirada desse confronto”.54 Menos de um decênio após o descobrimento, e devido ao fato de que os primeiros africanos escravos aqui aportaram “nas matulas” dos portugueses – em geral com o apoio teológico da Igreja Cató- lica, que considerava a escravidão negra compatível com seus ensinamentos –, vingava o “confronto de destinos”, nascia a mestiçagem da velha cultura, em tempos ávidos, mercantilistas, com etnias e modos de organização vivencial em estado de graça, marca- dos pelo primarismo das relações antropológicas ameríndias e afri- canas, primarismo de “gente boa e de bela simplicidade”, como observara Pero Vaz de Caminha. Em pouco tempo, os bailados de aldeia do Norte de Portugal, de onde vieram a maior parte dos navegantes, se contagiaram de uma coreografia nativa, aborígine, de gingados personalizando animais e pássaros e a cosmogonia da terra brasileira, e de balancês e bamboleios do litoral e interiores de florestas africanas. E a prolação de um ritmo quaternário de respira- ções coletivas ameríndias e negras se transforma em versos contagiantes, nas adaptações à batida aldeã tradicional do recitar ibérico. Desse entremeio de raças e línguas e modos de ser peculia- res, parece que a própria Poesia retorna a seus alvores, derivada da dança e do canto, e do farnel mais corriqueiro e singelo. Das expres- sões do corpo, surge o Verso, como notação de uma comoção bem simples, captada de relações com o Novo Mundo, mais enlevadas que precavidas. Mais que uma amargura contingencial pela imposi- ção de outra geografia, com ares de deserção e com implicações no biorritmo das estações do ano, no depauperamento das condições vitais e na mudança radical das referências laborais, há que conside- rar aspectos mais profundos, e não menos contundentes, que espe-
54AZEVEDO, Fernando. A Cultura Brasileira - I Os Fatores da Cultura,
p.193.
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tam e sangram a identidade do ser e sua manifestação existencial, seu novoethos, marcado pela brutalidade da dissociação dos víncu- los de origem. Indígenas e africanos de pele preta, por um lado, e portugueses aventureiros e conquistadores, clericais e degredados, por outro, ainda que estes hierarquicamente superiores no contrato de comando, faziam parte de comunidades estruturadas, com esta- bilidade rítmica da vida, sedimentadas em seus sistemas vivenciais e de representação do mundo. Nas paragens do Novo Continente, esfacelam-se as fortunas de saberes, costumes e crenças relacionados com a magia e com as tradições, que permitem que o espírito se desenvolva de maneira estruturada. Em seqüência, promove-se uma desordem psicossocial fulminante, pelo esfacelamento dos hori- zontes tribais e provincianos, o estilhaçar dos afetos contínuos e os desvios de papéis que o indivíduo desempenhava nasua tribo de origem. Lusitanos se indianizaram e, deserdados da escrita, reco- meçaram o mundo na base doaprender-fazendo. Escutemos uns ver- sos tupis, reparando-se na bela dimensão transcendente de suas imagens:
Scha mann rumaé curi
Tejerru iaschió.
Aiqué Caracara-i
Serapiró aramu curi.
Scha mann rumaé curi
Ce nombore caá puterpi
Aiqué Tatu memboça
Ce jutûma aramu curi.
Tradução de Norberto Silva, da versão portuguesaverbum ad verbum
de Eduardo Laemmert:
Quando me vires sem vida,
Ah! não chore, não, por mim,
Deixa que o Caracaraí
Deplore meu triste fim.
Quando me vires sem vida
Atira-me à selva escura,
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Que o tatu há de apressar-se
Em me dar a sepultura.55

Numa espécie de nivelamento de situações homogêneas para a formação de um quadro nacional de valores agregados, cabe mencio- nar que os silvícolas brasileiros ficavam em vantagem, pois, pelo menos e resignadamente, permaneciam divagando em seuhabitat, sabendo administrar os bens da natureza. Os outros, lusos e afros, é que sofreram o estranhamento dos humores ecológicos da nova terra e suas novidades, e os padecimentos inerentes ao desterro. Afora isto, os índios eram mais ingênuos, ou melhor, mais singelos que os negros (na maior parte dos grupos banto, sudanês e guineo-sudanês islamizado) e os portugueses. Talvez por isso, essa “vantagem” te- nha-se convertido em causa de aflição e conflito: serem tolhidos da liberdade absoluta de seus estados naturais para existir na tal situação de encadeamento pelo nivelamento. Fator de umatristeza congênita, o indígena suportou outros suplícios mais agudos, pois que, “passada a fase idílica dos primeiros encontros com o branco só lhe viriam calamidades: escravidão, doenças, o extermínio das tribos, a mortan- dade, a violência à sua natureza acostumada ao ar livre e ao nomadismo. Preado nas selvas pelos aventureiros gananciosos e inconscientes e destinado a trabalhos rudes, para os quais nunca fizera qualquer apren- dizado ou iniciação psicológica, não tardaria a sofrer as conseqüências da transplantação e da violência a que era submetido”.56

Em 1549, com a chegada do Governador Geral Tomé de Souza, vieram para o Brasil cerca de mil e quinhentas pessoas, entre quatro- centos criminosos condenados ao degredo, artesãos, funcionários da Coroa portuguesa, soldados, algumas mulheres (nem todas de es- pontânea vontade) e oito meninos órfãos. A “vontade espontânea” dos portugueses em vir ao Brasil deve ser enxergada com certa restri- ção já que, naquela época, o que ambicionavam eram as terras do Extremo Oriente, o caminho das Índias.57 Assim, diferentemente dos povos anglo-saxões que para a América vieram com famílias razoavelmente bem ordenadas, os lusos que aqui chegaram eram
55Apud. ROMERO, Sílvio.História da Literatura Brasileira - I, p. 123-4.
56MOOG,Vianna. Bandeirantes e Pioneiros, p. 83.
57CALDEIRA, Jorge e outros.Viagem pela História do Brasil, p. 30.
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quase exclusivamente homens. Lidavam com as índias para o prazer e a prenha, e com negras para as “ligações transitórias das mancebias, da luxúria, da lascívia e da impudência...”.58 Afora os que constituí- ram família estruturada, provocaram em geral o nascimento de filhos desgarrados, aventureiros e soltos no mundo e, por serem mestiços, estrangeiros em relação aos próprios sangues que lhes deram origem. Ao mestiço coube o papel da travessia de costumes. O mameluco original, no entanto, segundo Couto Magalhães, era “excelente pela sua energia, coragem, sobriedade, espírito de iniciativa, constância e resignação em sofrer trabalhos e privações”, embora herdasse da mãe indígena a imprevidência, a falta de cuidado com o dia de amanhã.59

Não mais é possível interpretar romanticamente os fatos de me- ados do século XVI como um embate vil entre o conquistador sádico e estuprador, de um lado, e os bons-selvagens, índios e negros, de outro. Embora o assunto mereça agudas reflexões, mais sereno é pensar que, para as três etnias, mundos de entendimentos consuetu- dinários deixaram de existir. Com o correr do tempo, e unidos pelo conflito da anulação de seus totens simbólicos, pela dessacralização e discórdia da vida, esses povos e culturas se entrecruzaram movidos pelo reconhecimento, no outro, dos calvários que identificaram a to- dos. Assim, criou-se a identidade da resistência pela resignação dolo- rosa, como alternativa de sobrevivência. A aflição e emotividade de- correntes dessa amargura e o clima de desapego ao que lhes era mais caros propiciaram o surgimento de relações naturais e sobrenaturais culturalmente híbridas, e o antepassado e o presente de cada grupo se transformaram, por meio de uma costura dos farrapos, num ama- nhã embaçado, determinado por sabenças indecisas, pré-lógicas, má- gico-religiosas, sincréticas. O decantamento dessa situação é matricial na cultura brasileira e determinante da essência estrutural de nossa cultura e arte.

O linguajar estruturado dessas representações artísticas, quer da Poesia Popular de antiga procedência, transmitida de boca em boca, como o tambor das selvas, de geração em geração, quer da poesia formal utilizada pelos jesuítas e ilustres, quer da miscigenação de arquiteturas, de danças e cantares, e tudo quanto for o meio utilizado
59CASCUDO,Luís da Câmara.Di cioná rio do Fo lclor e Br asileir o, p. 463.
58MOOG, Vianna, op. cit. p. 82
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para representar a natureza humana, tudo se entrecruza numa espécie de “amaciamento” – diria Gilberto Freyre – se interpenetra cultural- mente, pela coexistência harmônica, para fundar a realidade fenome- nal de uma arte nacional mestiça. A Arte Brasileira, filha de ninguéns – como diria Darcy Ribeiro –, parente de mestiços pretizados, esbranquiçados e aindiados (pardos, enfim), nasce forte, resoluta, engendrada no profundo instinto de sobrevivência e permanência do ser. É alicerçada no filho bastardo de algum europeu, e no encontro de mestiços, a fermentar a mistura de informações sangüíneas e etnias culturais. Possui a robustez de morenos e mamelucos destemidos e arrojados, e o enlevo de morenas emamalucas ou caboclas sensuais e meigas, renovados pela intersangüinidade de novas raças. Dados censitários de 1872, embora imprecisos, dão conta de que 42,18% da população brasileira era constituída de pardos (entendidos como mes- tiços: mamelucos, mulatos e cafuzos). Esse percentual é maior, se considerada tendência de os quase-brancos se declararem brancos. Daí, a sucinta e superficial definição de brasileiro, dada por Luiz Melo Rodrigues: “europóide, de tez morena clara, de estatura pouco supe- rior à mediana, cujos laços culturais acham-se indelevelmente presos à civilização ocidental”.60

Integrações diversificadas e diversidades integradas, isto é de certo modo a fotografia etnocultural do Brasil. Do cruzamento radical de nações aborígines e peninsulares, no princípio, resultaram marcas de cosmogonia, uma morfologia embrionária de encontros míticos. Talvez aí se explique o que há de temperamental e sedutor como características luminares da arte brasileira, e não só na Literatura oral e, especialmente, cantada. Nos primeiros decênios de colonização, e a partir da intervenção jesuítica, em que se estilhaçam as normalidades e normatividades da existência, danças e cantos e um linguajar formal adventício – porque identificado com os padrões do dominador – se mesclam e se decantam, interferindo em hábitos motores rítmicos concordes com as tipologias étnicas e sociais postas em co-habitação e consangüinidade. Vive daí uma nova temperança rítmica, sem con- troversos profundos. Por isto, germina um novo mundo de relações autênticas, porque procriadas da mais primitiva das expressões: as
60 “As Etnias Brasileiras”. In: AZEVEDO, Aroldo. Brasil. A Terra e o Homem - II,
p. 159.
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vozes do próprio corpo. E essa temperança se alastra pelo país com suas características e predileções regionais. Produz a diversidade orgâ- nica dos vários recantos brasileiros, com suas cores, mimos e ritmos, e o vozerio multiforme das prosódias. Nasce nossa arte vocacionada para a primariedade, para a sensualidade, devido à hegemonia, nas raízes, do cruzamento especial de estratos autóctones sobre matizes culturais peninsulares que, teoricamente, poderiam colonizá-los à força.

Esse primarismo radical, o sal da vida, é base de uma arte eviden- ciada por traços de especificidade que se cristalizaram. Distingue-se como fator fundamental de nacionalidade, surpreendente, se se leva em consideração que se engendra em uma terra nova e, portanto, com as condições sociais de submissão ao mundo invasor, europeu, for- mado por milenárias culturas. Tais vínculos de primarismo, base de um encadeamento rítmico que permeia as manifestações artísticas brasileiras, exprime-se por um sentido de rusticidade, de espontanei- dade, de uma condiçãonaïf,fauvista, se colocadas em confronto com os princípios estéticos do Velho Mundo, ditos “clássicos” ou buro- craticamente assimilados e estatuídos pelas elites brancas, integradas, cimentadas pela escritura.

A mestiçagem cultural brasileira se vislumbra pela anatomia rít- mica de suas cores, pela montagem em banho-maria de um prisma cultural que, de um lado, é fortemente matizado pelafr ui ção de mun- dos tribais ameríndios e africanos; de outro, éexpr essão de uma ecolo- gia dos trópicos, exuberante, quente e contagiante, perpassada pela admiração européia colonizadora que, por uma identidade nostálgi- ca, se ajunta a ela em sua genealogia. Há que ter em mente que no Brasil aportou, em sua maioria, um contingente de homens originá- rios de classes humildes, provindos da afetividade ecossistêmica e pacata da vida em aldeias e “pueblos”. Ou cidadãos urbanos, mas de incipiente educação formal. E que por certo sentiram na cultura em gestação resquícios de um mundo perdido, que renascia aos olhos peninsulares exilados. Esta é a especificidade fascinante de uma an- cestral dialética artística que, despida de seculares pudores e regula- mentos e preceptivas ornamentais, concilia o vermelho, o amarelo e o azul puros, em sua razão física de cores primárias, com seus interme- diários laranja, verde e violeta, para ornar as festas populares com seus cantares, bailados, batuques, literaturas (e outros carnavalismos), e, puxando as brasas, como se diz, para a nossa sardinha, o objeto
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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artístico deste Ensaio, as Modas Caipiras. Correlata a essas cores é a matéria verbal de grandes escritores brasileiros, cultos-populares, como Gonçalves Dias, Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, Ariano Suassuna, Jorge Amado, Antônio Callado, Raquel de Queiroz, Nélson Rodrigues, Darcy Ribeiro, Dálton Trevisan, Paulinho da Viola, Caetano Veloso..., entre tantos. Disto se entende: a arte ilustrada é uma superação do popular, nunca uma ruptura. Como é impossível mensurar a zona de limite entre ambas, é prefe- rível considerar arte como arte, que tem como antônimo a não-arte. Neste ponto, encaixa-se uma súmula estético-poemática de Chico Buarque sobre o sentido que permeia o “amaciamento”, arranjo adaptativo e miscigenação da cultura e arte brasileira:
O meu pai era paulista,

Meu avô, pernambucano,
O meu bisavô, mineiro,
Meu tataravô, baiano,
Meu maestro soberano
Foi Antônio Brasileiro.
Foi Antônio Brasileiro

Quem soprou esta toada Que cobri de redondilhas Pra seguir minha jornada, E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas.
(Chico Buarque, Par ato dos, 1994.)
* * *

O campo e o domínio das artes populares se confundem até certo ponto com o da etnografia cultural – escreve Souza Barros. Assinala o humanista que “com o desenvolvimento das culturas as projeções nesse terreno vão correspondendo às alterações e mudanças dos ní- veis culturais”.61A partir desse substrato, e da fusão de caldeamentos
cruse cozidos (diria Lévi-Strauss), e consideradas as transformações
61BARROS, Souza.Ar te, Fo l cl or e e Su bdesenvol vime nto, p. 55.
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que se processam a partir das condições geográficas, das demandas migratórias internas e imigrações estrangeiras, nasceu um gênero cul- tural: o caipirismo e seus domínios expressivos. Sua voz mais primi- tiva, porque orgânica e visceral, associada à do próprio corpo, se dá pela dança ou arrasta-pé, se dá pela oralidade do canto na atitude funcional dos cantadores, geralmente em duplas. Neles, profunda- mente marcados pelo vértice do ideário feudal, pela “santa tenção de tornarem [indígenas e africanos] cristãos”, pelo gosto espoliador dos degredados portugueses que aqui foram deixados, pelos rigores do classicismo burguês em expansão, expressos em sua cultura formal, é que dá os primeiros passos o que veio a constituir-se na Moda Caipi- ra, uma poesia-canção fervida com ingredientes autênticos, folclóri- cos, na especificidade do termo.

A Moda Caipira, tal como viemos a conhecê-la, é empática por natureza; nasce no calor existencial do povo. Os escritores de músicas e os cantadores, iletrados geralmente e autodidatas em Gaia Ciência,62 lhe dão forma, e a devolvem à própria identidade: opovo. Sobre o método da composição de um poeta caipira, declarou-me o cantor e compositor Rubens Vieira Marques, o Vieira, da dupla Vieira e Vieirinha:

Pra escrevê uma moda boa, a primeira coisa que eu faço é tirá trinta e duas trova, que é uma moda pa gravá, de quatro verso [4 estrofes de 8 versos cada = 32]. Vai pondo as trova tudo certinho, as rima... São trinta e duas rima. Então cê faiz a métrica pra cabê naquelas trova. Tem que sê certinho, porque se cê faiz um verso muito comprido e outro curto, num fica certo, né? As trova têm que sê tudo certinha pra cabê na moda. Cê pega o tema, escolhe a rima e vai fazendo. Tem rima que não dá moda.Ci n z a, por enxemplo, que que cê vai achá depois decinza? Que que você acha pra rimar comsangue? Tem que estudá as rima certinho pra dá a moda.
A pessoa aprende a fazer verso por influência lá de
cima, acho que é o Deus. O Teddy Vieira chegava e dizia:
62 Conjunto de princípios que, na Idade Média, regiam a “arte de poetar”. Os
poemas medievais enfocados neste trabalho, diferentemente do que ocorre
em séculos anteriores, são tecnicamente bastante evoluídos.
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“eu fiz uma moda”. Cadê, dexa eu vê. E ele dizia: “eu não escrevi ainda”. Ele não tinha escrivido ainda..., tava só na cabeça. Ele sabia, sentava, e ia cantando pra gente. Ele, e eu também, nunca consigo falá uma moda. Eu só me alembro cantando. O Lourival dos Santos também faz ansim, porque nóis dois aprendemo com o Teddy. O Teddy Vieira foi um dos maior na moda-de-viola.63

A Moda Caipira de raízes, amestiçada distante com os antigos cantares ibéricos, possui as características e especificidades fundamen- tais de um etnotexto que se esparrama com generosidade por amplo território. Qualifico-a comoetnotexto porque, considerado o âmbito de sua virtualidade afetiva e estilística, constata-se que está enraizada nos lastros mais profundos e ancestrais da cultura. O poeta caipira é aquele que, personificando os anseios grupais, o tempo todo colhe informações antenadas no modo de ser da cultura, fica assuntando causos e aspirações coletivas para entorná-los em forma de poesia. Aprende e aperfeiçoa fórmulas de versejar, no sulco da tradição que, partindo da África e da Europa, atravessou o oceano e se amestiçou aqui com a cultura ameríndia. Identifica-se por uma espécie de rapsodo, qualificado pelas funções de um estradeiro (não raro um boiadeiro), quer dizer, aquele que vê antes, ou vivencia os fatos e os interpreta aos ouvintes. O modista parece ser um “ponteiro de comitiva”, o que aponta o caminho, realiza a travessia de costumes, personaliza e ence- na o mito do eterno retorno: sempre volta a seu bairro e à sua gente para contar. É o elo da tradição com o presente e assim, instituído de gravidade funcional em seu meio, e honrando o passado, garante o respeito e proteção dos ancestrais. À cavalo ou apeado, vive com um banzo fora do entendimento; e a intenção sonhosa na cabeça, nem é preciso redizer. Tem a função do homo viator (o viajor), figura tantas vezes rebrotada na Literatura Popular de antiga procedência. Isto sig- nifica que – é uso e costume – toma para si o papel de protagonista das histórias e leréias que narra, fingidamente interpretadas como se as tivesse vivido. Tal sucede emFerreirinha (1950), uma das modas- de-viola mais regravadas em várias décadas:
63 Colóquio gravado em 11.dez/95.
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FERREIRINHA
moda-de-viola
Carreirinho
Eu tinha um companhero
Por nome de Ferrerinha
Nóis lidava com boiada

Desde nóis dois rapaizinho. Fomos buscá um boi bravo No campo do Espraiadinho Era vinte e oito quilômetro Da cidade de Pardinho.
(Zé Carreiro e Carreirinho,
Os Maiores Violeiros do Brasil, 1970).

O nomadismo do boiadeiro e do carreiro de bois campeando pelos confins do sertão pressupõe, por um lado, o conhecimento libertário de vários rincões, por outro, a possibilidade de ensimes- mar-se por longos tempos, num isolamento reflexivo, meditativo do que presenciou, viveu e sonhou. O desconhecido, o distante e o insólito, altamente estimulantes da imaginação, permitem que se acen- dam os luzeiros dos horizontes projetivos, criativos. Suscitam a efervescência poética do mistério, o enfrentamento do nunca visto. Encará-los sem retroceder é uma heroicidade; compreendê-los, interpretá-los e expressá-los, uma saga que compete ao poeta, especi- alista em palavras. Por isto, o romance narrado se institui como visão legendária do incomum, enaltecido de acentos emotivos e individu- ais de autoria. Este detalhe instaura sua marca especial de credibilidade e verossimilhança. Observa José Guilherme Cantos Magnani, num interessante estudo, que “o caráter verossímil [no caso da literatura oral-popular] reside não numa suposta capacidade de refletir fielmen- te a realidade, mas no fato de que sua temática e regras de produção – métrica, rimas, metáforas, sintaxe narrativa – assim como a forma de recepção (lidos ou cantados, para um grupo) são conhecidas e respei- tadas tanto pelos poetas como pelos consumidores. São verossímeis para seu público porque o registro em que são produzidos se ajusta
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aos da recepção”.64Tudo é aceito como se os fatos que existiram pelo sertão, nas andanças do cantador, se diluíssem e se acrescentassem da intervenção imaginativa e artificiosa do poeta, pois a ele é dado o tempo de ver, o espaço para confrontar e a quietude taciturna para sonhar e arquitetar histórias em forma de poemas aviolados. E trans- formar-se em agente multiplicador. Escreve Alfredo Bosi que “a fan- tasia e o devaneio são a imaginação movida pelos afetos”.65 Disto se conclui que, para o caipira, a moda é resultado de um apeneiramento construtivo, que tem por natureza irradiar eventos frisados pelo au- tor. A força e vibração do tema deixam de ser corpóreos.

O cantador é um autodidata, tendo a percepção cultural e a intui- ção como pressupostos essenciais de sua inteligência artística. Canta pela necessidade da expressão e pelo impulso solitário do prazer de ser artista. Seu ritmo fluente na combinação de palavras, apreendido da tradição e musicalmente automatizado, possibilita harmonias co- nhecidas do auditório, como também criativos e oportunos desvios e dissonâncias. Seus temas e tramas enfocados nas modas reúnem condições paratransformar a realidade imaginada, com a autoridade e as licenciosidades poéticas admitidas por seus concidadãos. O insumo mais elementar é a concepção mimética de seu mundo, povoado de realidades e fantasias. O cantador é um discursador de poesias no sentido estrito, mas que se peculiariza em alguns aspectos inerentes à literatura oral-popular. No sonhar acordado, nesse devaneio pelo desconhecido do sertão, o auditório lhe é solidário e se arregimenta sob a máscara da cumplicidade. Fingir ou mentir são marcas primári- as de civilização; é quando o sonho deixa de ser faculdade da vida e se torna o teatro de sua própria representação.

Em Rei do Gado (gravada originalmente em 1946, por Tonico e Tinoco), outra das modas-de-viola de maior comunicação e empatia com o público, que coloca em contraste o comportamento arrogante de um personagem rico e poderoso (o Rei do Café) e a humildade de um vaqueiro, aparentemente despossuído (o Rei do Gado), o eu- cantador intervém como testemunha ocular da história. Trata-se de uma escritura de conteúdo pedagógico-moralista e admoestação pú- blica, em que símbolos de riqueza são desmoralizados por valores
64Festa no Pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade, p. 57.
65Ensaio “Frase: Música e Silêncio”. In: Bosi, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia, p.65.
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correlatos aos de humildes peões e lavradores – indivíduos identifica- dos pelo dote da boa conduta, dispostos para a lida e sacrifício e vistos positivamente pela virtude da humildade. O Rei do Gado é isto: aquele que saiu de baixo, palmilhou estradas, possui a emboca- dura do berrante e, um outrora pobre virtuoso – como nas tópicas medievais – não tem vocação para alardear outras riquezas.
REI DO GADO
moda-de-viola
Teddy Vieira
Num bar em Ribeirão Preto

Eu vi com meus olhos esta passage Quando o champanhe corria a rodo No alto meio da grã-finage.
Nisto chegô um peão
Trazendo na testa o pó da viage
Pediu uma pinga para o garção,
Que era pra rebatê a friage.
Levantô um almofadinha

E falô pro dono: “eu não tenho fé
Quando um caboclo que não se enxerga,
Num lugar deste vem pôr os pés.
Senhor que é o proprietário
Deve barrá a entrada de quarqué,
E principarmente nesta ocasião
Que está presente do Rei do Café...
(Liu e Léu,Jeitão de Caipira, 1984)
Cabe uma explicação que se complementa em capítulo posterior.
Rei do Gado, com sua reprimenda simbólica ao Rei do Café, reflete a

mal-querência e escárnio ao tradicional sistema de dominação na zona caipira. A simpatia que se transfere ao violeiro-cantador decorre de uma situação histórica pontual relacionada a outra simbologia: a apro- ximação do auditório com o ideal idílico, resoluto e heróico da figura de um boiadeiro, o antigo “passador de boiada”. Como se sabe, os
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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Barões do Café mantiveram total domínio econômico e político, des- de o Período Colonial, passando pelo Império e adentrando a Repú- blica. Responsáveis pelo ingresso do capitalismo rural no sertão da Província de São Paulo, fizeram da expansão cafeeira uma das alavan- cas de desenvolvimento do Brasil. As lavouras de café saíram das glebas mineiro-fluminenses e paulistas do Vale do Paraíba em dire- ção ao planalto, avançando em direção aos solos de Ribeirão Preto, Jaú, Araraquara, São Manoel, Jaboticabal e logo a seu distrito: São José do Rio Preto. Essesbarões todo-poderosos compunham uma aristocracia luxuosa e intolerante e nunca se adaptaram a outra mão- de-obra que não fosse o braço escravo. Portanto, continuaram des- prezando o caipira nativo, tido como imprestável e “velha praga”. Instaura-se um clima de ressentimento de classe. Surgem outros ei- xos de influência comunitária e, entre eles, o poder do boiadeiro aventureiro, aquele que repassa os quatro cantos, despojado a viver na lida em liberdade, e de um trato mais amistoso e até fraterno com o caipira tradicional, o ex-escravo que logo adere ao modo de viver caipira, e o imigrante pobre, o carcamano, logo acaipirado.66Numa situação de reflexo com a história, a moda Rei do Gado ressalta de pronto o princípio de identidade advindo da ilusão aproximativa com o pecuarista e ruptura de barreiras éticas. Enfeixa de um lado um estado tensionante e ressentido entre as idéias de euforia (boiadeiro) e disforia (fazendeiro de café); de outro, encena uma admoestação e desmerecimento do poder, sentidos e expressos plenariamente como um espicaçar dos males e o tradicional culto à vindita. Entre outros conteúdos implícitos e irradiantes, essa moda-de-viola registra, me- diante a transgressão pela irreverência ao poderoso, a superação de uma etapa marcada pela quebra da hierarquia. Este é o indício mais relevante do visgo instantâneo de identidade e consenso interativo com o público, em sua funcionalidade como etnotexto, abrindo um campo de conceitos que se alarga com a idéia de socialização.
***
66 O termocarcamano é de origem urbana. Pejorativo, tem origem na expres-

são “calca la mano”, ou seja, reflete a ordem que os comerciantes davam a seus subalternos imigrados da Itália para que “arredondassem o peso da mercadoria, forçando a mão sobre o prato da balança”. In: Carelli, Mario.
Carcamanos & Comendadores, p. 19.
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A incorporação de um caso de amor aventuresco aparece num dos clássicos da moda-de-viola, Boiada Cuiabana. Composta em 1930 por Raul Torres e gravada no mesmo ano por Cornélio Pires, Zé Messias e parceiros e, em 1938, por Torres e Serrinha (Antenor Serra, sobrinho de Torres), trata-se de uma das maiores repercussões de Tonico e Tinoco (irmãos João Salvador Pérez [São Manoel, 1919-1994] e José Pérez [Botucatu, 1920-]) e de Tião Carreiro e Pardinho (José Dias Nunes, Montes Claros – MG, 1934-1993; Antônio Henrique de Lima, São Carlos – SP, 1932 ). A enumeração tópica de cidades distantes, agregadas ao imaginário inóspito e paradísico do pantanal mato- grossense e dos tocadores de uma boiada, com a participação afetiva de um menino e demais boiadeiros, tratados nominalmente; o tom vitorioso de um protagonista endinheirado numa roleta de jogo, capaz de impressionar uma morena paraguaia, imprimem ares herói- cos a esta sagarana.67 Os traços de permanência da tópica da moça rouba-
dae seu caráter romanesco, tantas vezes regenerados na Literatura

Popular de antiga procedência, convertem-se num dos constituintes temáticos de maior simpatia dentro das bases de previsão – o univer- so real e imaginário caipira. EmBoiada Cuiabana, como era comum nas modas mais antigas, principalmente nas toadas, há entre os “ver- so e meio” (sextetos) cantados monólogos prosificados em tom declamatório, no caso em pauta, com a participação do estradeiro (o próprio protagonista que estava cantando) e da personagem femini- na. Essa boiada, ajuntada dos usos e costumes e afetividades seduto- res da terra paraguaia, sobrepassando o território pantaneiro para desembocar no mundo caipira, parece alegorizar o transpasse cultural que se dá pela marcha lenta dos intercâmbios culturais dos quais o
homo viator– o modista – é agente multiplicador:
BOIADA CUIABANA
moda-de-viola
Raul Torres
Vô contá a minha vida
Do tempo que eu era moço
67 Apropriei-me da palavra motivado naturalmente em Guimarães Rosa: saga
+ -rana = “pequena saga”.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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De uma viage que eu fiz
Lá pro sertão de Mato Grosso,
Fui buscar uma boiada,
Isto foi no mês de agosto.
Meu patrão foi embarcado
Na linha Sorocabana,
Capataiz da comitiva
Era o Juca, flor da fama,
Fui tratado pra trazer
Uma boiada cuiabana.
No baio foi João Negrão
No turdio Severino
Zé Garcia no alazão,
No pampa foi Catarino,
A madrinha e o cargueiro
Quem puxava era um menino.
Eu saí de Lambari
Na minha besta ruana,
Só depois de trinta dias
Que cheguei em Aquidauana,
Lá fiquei enamorado
De uma malvada baiana.
Ao chegar em Campo Grande,

Num cassino eu fui entrando,
Uma linda paraguaia
Na mesa estava jogando,
Botei a mão na argibera
Dinheiro estava sobrando.
Ela mandô me dizê
Pra que eu fosse chegando,
Eu mandei dizê pra ela

“Vá bebendo, eu vô pagando”,
Eu joguei nove partida
Meu dinhero foi andando.
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declamado:
– A lua foi-se escondendo / Vinha rompendo a manhã !

Aquela moça faceira / trigueira, cor de romã / soluçando me dizia: –Muchacho, llévame contigo, que te daré mi alma, todo mi amor, todo mi cariño, toda mi vida...

–E os boiadeiros no rancho / estavam prontos pra partida. / Numa roseira cheirosa / os passarinhos cantava. / A minha besta ruana / parece que adivinhava / que eu sozinho não partia, / meu amor me acompanhava...
Eu parti de Campo Grande
Com a boiada cuiabana,
Meu amor veio na anca
Da minha besta ruana,
Hoje eu tenho quem me alegra
Na minha velha choupana.
(Tião Carreiro e Pardinho,
Modas de Viola Classe A, 1974)

Esse olhar regressivo como conjetura enunciadora se manifesta, entre outros recursos textuais, pela retransmissão de um “causo” à maneira de umouvi-dizer, reproduzindo-o tal como fora contado. Elementos textuais de personalização dos fatos fazem do cantador- violeiro um avalista das situações narradas, como se fossem origina- das de suas próprias inquietações ou como se as tivesse verdadeira- mente vivido ou presenciado em suas andanças. Com essa provoca- ção imaginativa, o modista busca o assentimento e solidariedade do ouvinte.
Exemplifico essa estratégia de enunciação com o seguinte excerto
de Preto Fugido, moda-de-viola de Zé Carreiro (Lúcio Rodrigues):
PRETO FUGIDO
moda-de-viola
Zé Carreiro
Do jeito que me contaro
Eu vô contá bem direitinho
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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Que um dia o pai de Suzana
Saiu paseá no vizinho.
Suzana ficô em casa,
Companhero, um irmãozinho,
E um preto tava sondano,
De dentro de um capãozinho,
Proveitô a oportunidade,
Robô a pobre mocinha...
(Zé Carreiro e Carreirinho,Ca no eir o, 1978)

O homo viator – o cantador, identificado como um estradeiro – realiza uma incorporação lírica dos fatos. Quer dizer, na perspectiva do presente enfoca as situações pretéritas reais ou emotivamente ima- ginadas. A quadra seguinte exemplifica como um modista é descrito, adjetivado e, de modo afetivo, entoado na voz de outro cantador:
O amigo Chico Mineiro,
Caboclo bão, decidido,
Na viola era delorido,
E era o peão dos boiadeiro.
(Chico Mineiro, toada de
Tonico eFrancisco Ribeiro, 1945)

Indo de encontro a essas ponderações, Câmara Cascudo observa que o viajante é aquele que, juntamente com o pescador e o caçador, tem consentimento plenário e o velho privilégio universal para a invenção de mentiras.68 Simbolicamente, o viajor na função de enunciador finge ver o que os outros não vêem, confinados no isolamento, represados enquanto passa o rio da história.
Afirmam Reinaldo Martiniano Marques e Vera Lúcia Felício Perei-
ra, baseados em Walter Benjamim (O Narrador. Considerações Sobre a
Obra de Nicolai Leskov) que a literatura oral-popular conta basicamente
com duas espécies de narradores, provindos de modalidades arcaicas
de enunciações: “o narrador-viajante que traz de terras distantes o saber
68CASCUDO, Luís da Câmara.Di c i o n á r i o d o Fo l c l o r e Br a s i l e i r o, p. 491-2.
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do outro, e onar rador-artesão que, permanecendo em seu meio e traba- lho, possui o saber da história, preservando os casos e tradições da comunidade”.69 Essa primeira espécie de narrador é mais freqüente na Moda Caipira, e assimila aspectos fundamentais da segunda. O modista realiza-se como o intérprete do sonho da eterna procura, o anelo da busca interior, da procura pela paz almejada no lugar distan- te. No deslocamento físico do narrador-viajante, o caboclo70 projeta seu anelo detravessia, associado à aventura e principalmente, uma aventura associada ao afã de tornar-se heróico, o desejo de ascensão na sociedade como um todo a qual o oprime. Neste sentido, e de maneira geral, o cantar caipira está associado à simbologia de uma quimera de mudança. Por isto, uma das tópicas mais recorrentes de uma moda lírico-narrativa é o “me alembro e tenho saudade”, e suas variações, tal como ocorre em Boi Soberano, uma das dez modas caipi- ras mais gravadas e lembradas pelo público:
BOI SOBERANO
moda-de-viola
Carreirinho / Izaltino Gonçalves de
Paula / Pedro Lopes de Oliveira
Me alembro e tenho saudade
Do tempo que vai ficando,
Do tempo de boiadeiro
Que eu vivia viajando.
Eu nunca tinha tristeza,
Vivia sempre cantando,
Mês e mês cortando estrada
No meu cavalo ruano.
69“O Ar t es a na t o da Me mó r i a na Li t er a t ur a Po pu l a r do Va l e do Je qu i t i nh on ha .”
In:O Eixo e a Roda: Memorialismo e Autobiografia (Revista de Literatura Brasileira),
p. 177.
70 Empregareicaboclo tal como é usado no cotidiano caipira, não como a mais

antiga mestiçagem brasileira (ameríndia e branca peninsular), mas como designativo de um indivíduo, seja qual for a sua etnia. Essa conceituação coincide com aquela proposta por Jacques Lambert em Os Dois Brasis, p. 86.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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Sempre lidando com gado,
Desde a idade de quinze ano,
Não me esqueço de um transporte,

Seiscentos boi cuiabano,
No meio tinha um boi preto
Por nome de Soberano...
(Tião Carreiro e Pardinho,Boi Soberano, 1973)

À afirmação de alembrar-se de um causo, e dele ter saudade, há que considerar a própria voz dos cantadores como integrante funda- mental para a ilusão de veracidade dos fatos. As seguintes observa- ções de Paul Zunthor confirmam essa ilusão interativa pela conduta
em presença dos artistas, considerado ainda o sentido verídico dado

pelas vozes: “o emprego da dupla dizer-ouvir tem por função mani- festa promover (mesmo ficticiamente) o texto ao estatuto do falante e de designar sua comunicação como uma ocorrência de discurso in
praesentia”.71 O escritor de modas e o violeiro-cantador presentificam
o sonho. Assim, em vista da criação de um estado de concretude,
mais que umar e pr esent aç ão teríamos umar e pr esent ificaç ão.

Como se observa, esses narradores ou modistas fazem, por as- sim dizer, uma espécie de notação psicológica das experiências vividas ou imaginadas, das aspirações e quimeras, e da sabedoria coletiva do homem e da mulher do campo, caipira. A moda instrumentaliza uma espécie de confissão em grupo, ou umacon-ficção. Neste ponto, cabe lembrar que este era um procedimento habitual no Romanceiro tradicional: os romances punham o relato na boca do protagonista, com o uso do pronome de primeira pessoa.

A respeito desse sentido de obra coletiva e, como tal, incorporada pelo protagonista e apresentada em primeira pessoa, e embora tra- tando de elementos temáticos e estruturais do Romanceiro nordesti- no, observa Idelette Muzart Fonseca dos Santos que “ao contrário do texto escrito, o texto literário oral encontra-se raramente isolado, ou produzido como texto, mas sempre inserido num discurso, como mensagem em situação”. Por isso, ele não é autônomo: a evolução de seu existir sempre depende evolutivamente do co-existir social e das


seu existir sempre depende evolutivamente do co-existir social e das
71 ZUNTHOR, Paul. A Letra e a Voz, p. 87.
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convenções e quadro de valores de seu auditório. Fonseca dos Santos adiciona que “poderá ser melhor definido pelo conceito deetnotexto, que designa o discurso que um grupo social, uma coletividade, elabora sobre
sua própria cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual
reforça ou questiona sua identidade. Este etnotexto propõe assim uma

verdadeira leitura cultural do texto literário, leitura que representa, ao mesmo tempo, a afirmação de posse, como bem cultural do grupo, e uma posição crítica e interpretativa, pelo confronto entre o passado e o presente das práticas comunitárias e da percepção poética. ... É por- tanto através do discurso sobre o passado, voluntária e livremente desenvolvido, que a memória cultural se funda e se estrutura.”.72
72 Ensaio “Escritura da Voz e Memória do Texto: Abordagens atuais da Lite-
ratura Popular Brasileira”. In: BERND, Zilá e MIGOZZI, Jacques.Fronteiras do
Literário: Literatura Oral e Popular Brasil/França, p. 39.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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3. MODA CAIPIRA,
RAÍZES E BRASILIDADE

Até pelas dificuldades com a palavra escrita, o prazer da poesia popular não se dá pela leitura em silêncio, mas em recitá-la, cantá-la, ouvi-la. Levando a palavra em forma de pregações eclesiásticas... adi- vinhações, quadrinhas, cateretês, romances e cururus, é nesse contex- to que germinam vários gêneros de cantares brasileiros, inclusive o cantar caipira. A cruz solene nos cimos flamejantes das catedrais góti- cas para aqui foi transportada, com toda a majestade e irradiação mís- tica, em nome de El-Rei e da espiritualidade lusíada de seu povo. Com esse fervor religioso floresceu a Companhia de Jesus em seu sacerdócio, filosofia, evangelização e espírito pedagógico. Nasce a arte popular. Nascem também daí as elites encasteladas, as quais muitas vezes se erguerão superpostas e desapegadas do povo.

Sobre os tempos de nascedouro, de onde minavam os primeiros acordes da cultura brasileira, escreve o sertanista Couto de Magalhães (José Vieira Couto de Magalhães, 1837-1898), chamado o príncipe do indigenismo brasileiro:

O padre José de Anchieta aproveitou-se de uma dança religiosa dos índios, chamadacateretê, para atraí-los [os indígenas] ao cristianismo; introduziu esta dança nas festas de Santa Cruz, Espírito Santo, Conceição e Gonça- lo. Este uso subsiste em São Paulo, Rio, Minas, Goiás, Mato Grosso, Pará, Amazonas e, provavelmente, em ou- tros Estados. O cateretê, sendo cantado em versos, tem a vantagem de desenvolver a inteligência, criando os canto- res e trovadores populares; possuo versos em tupi, de
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Anchieta, dedicados à Nossa Senhora, para a festa da Con- ceição. ... O canto do índio é pausado, monótono e me- lancólico. A música, essa quase não sofreu alteração. O paulista, o mineiro e o rio-grandense de hoje cantam nas toadas em que cantavam os selvagens de há quinhentos anos, e em que ainda hoje cantam os que vagam pelas extensas campinas do interior. Quanto à língua, foi-se transformando e há quadras híbridas, como:

Te mandei um passarinho,
Patuá miri pupê;
Pintadinho de amarelo,
Iporanga vê iauê.

que quer dizer: “mandei-lhe um passarinho, dentro de uma caixinha; pintadinho de amarelo, e tão bonito como você”. ... O cateretê e o cururu são danças cantadas, religi- osas, indígenas. Ainda hoje, São Paulo adentro, o cateretê e o cururu figuram nas Igrejas, tenho-as ouvido em Carapicuiba, São Bernardo, Embu, Itaquaquecetuba, Moji e em muitíssimos outros lugares aqui, no Pará, Goiás, Cuiabá, Minas, Bahia etc. ... Essas canções foram preser- vadas e o finado Imperador Sr. D. Pedro II obteve, quan- do esteve em Roma, uma cópia manuscrita das mesmas, que me foi emprestada, sem tradução; infelizmente não copiei todas e não sei que rumo levaram. É dessas a se- guinte quadra que os meninos cantavam em São Paulo:
Ó Virgem Maria
Tupan cy êté,
Aba pé ara pora
Oicó endê yabé.
Tradução: “Oh, Virgem Maria, mãe de Deus verdadeiro;
os homens deste mundo estão muito bem convosco”.73
Mencionar o termobrasilidade, no pórtico deste capítulo, pode
73 O Selvagem.Apud. VALE, Flausino Rodrigues. Elementos de Folclore Musical
Brasileiro, p. 25-6.
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causar em certa corrente elitista aversão de ideologia fora de moda. Mas o nacionalismo – escreve Sílvio Romero –, “não há de ser uma tese objetiva de literatura, a caçada de um título; deve-se antes estudar o nosso povo atual em suas origens, em suas produções anônimas, definindo a sua intimidade emocional, a sua visualidade artística. Deve-se proceder ao estudo de nossa poesia e crenças populares, com a convicção do valor dessa contribuição etnológica, desse subsídio anônimo para a compreensão do espírito da nação”.74

Especialmente aludindo à Moda Caipira de raízes, ela é nostálgi- ca, melancólica e apaixonada. Reflete o sentimento do povo, no que lhe possa excitar a imaginação. É branca nas formas e rimas, e um tecido de negros, índios e brancos no pensamento e afeto. Expressa pela viola e seus cantadores a amargura hereditária das matrizes cultu- rais brasileiras: o lusitano exilado e melancólico, o índio e o negro escravos desterrados, mortificados pela miséria física e moral – a tris- teza vil de quem teve parte da seiva rapinada de alma, ficando buracos dolentes em cada peito. A quadra final de uma trágica toada caipira de Renato Teixeira ilustra o tom tristonho daSina de Violeiro:
SINA DE VIOLEIRO
toada

Por isso mesmo, amigo, é que eu lhe digo,
Não tem sentido em peito de cantor
Brotar o riso onde foi semeada
A consciência viva do que é a dor.
(Renato Teixeira,Amora, 1979)
A Moda Caipira é cantada no acasalamento do dueto em terça, de
mie dó, em falso bordão de dicção anasalada. O anasalamento conser-

va resquícios de línguas e dialetos ameríndios; o cantar “entoando vozes” mantém a tradição ritualística da missa, devocionada na igreja. Coincidente com a tradição das modinhas portuguesas, a Moda Cai- pira quase sempre é executada por duplas de cantadores masculinos. Vestindo camisas da mesma fazenda, como se fossem espelhos um
74ROMERO, Sílvio.História da Literatura Brasileira–I, de Sílvio Romero, p. 148.
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do outro, os companheiros de canto entendem-se – almas gêmeas – pelos sinais dos olhares, potencializando-se no outro e, incrementados e solidários, na partilha e comunhão interativa com o público.

Excetuando-se os gêneros para a dança e mesmo considerando seu caráter de entretenimento (além de sua função mística, como é caso dos cururueiros de Corumbá-MT e Piracicaba-SP e tantas outras danças religiosas), a pessoa concentra-se para escutar a Moda Caipira; pode eventualmente permanecer com a atenção flutuante; é desres- peito e pouco menos que impossível fazê-la de fundo musical, em meio das conversas paralelas, algazarras e afazeres. Por isto, no pago- de ao vivo, como evento de socialização, o desempenho dos violeiros, com o entusiasmo nos dedos e na voz, equivale a uma audição ou concerto. A postura dos cantadores assemelha-se, por tradição artísti- ca, à dos antigos contadores de fábulas. Presos pela proximidade, pela circunstância de lugar e tempo do auditório e pela energia expres- siva da oralidade, os ouvintes se distribuem ritualisticamente em roda dos cantadores, criando-se um espaço sacralizado em que o que vale são os repertórios grupais moralizantes, ávidos de beleza, ampa- rados pela força substantiva da tradição.

Outra característica é o destaque ao canto agudo, e alto dos modis- tas, principalmente na primeira voz do dueto – a chamada “voz do mestre” –, que encontra correspondência na tradição vocal árabe sedimentada na Península Ibérica. Supostamente, essa voz estridente e em falsete arremeda a presença da mulher na dupla, já que não era de bom tom que o recato feminino participasse diretamente de cantorias. A estridência alta e aguda de vozes acasala-se com os campos harmô- nicos médios e agudos típicos da viola. Esse padrão vocal persiste nos azes da chamada Jovem Música Sertaneja, mormente Chrystian & Ralf, Chitãozinho e Xororó, Zezé de Camargo & Luciano e Lean- dro & Leonardo. A esse respeito é interessante atentar para o seguinte depoimento: conta Tinoco (José Pérez, 1920), da dupla Tonico e Tinoco que, quando foram gravar o primeiro disco, na Gravadora Continental (Em Vez de me Agradecer, 1944, de Capitão Furtado, Jaime Martins e Aimoré), ao terminarem o cateretê, veio o técnico do estú- dio e disparou:
–Vanceis canta arto, né? Um olhou pro outro destilando e remon-
tando os pensamentos. Havia uma réstia de orgulhos. Acenaram em
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dueto que sim, no sorriso dengoso.–Pois ceis vai cantá ansim arto na
puta que os pariu!, espumou o moço raivoso e ameaçador, cobrando

que eles danificaram o microfone da empresa. Naquela época, conta Tonico, “nóis cantava os dois esticano os peito pra saí as viola, e encoieno o pescoço pra saí as vóiz, tudo num só microfone”. A partir desse acontecimento, nos primeiros anos da carreira, eram obrigados a gravar cantando de lado ou de costas pra não estragar o aparelho.75

A Moda Caipira de raízes pressupõe a viola caipira, um instru- mento amargurado que “chora”, pois, antes de ser viola, em sua fecundidade lúdica, deliciante, liga-se ao encadeamento de três esta- dos interiores que estão na base ameríndia, africana e ibérica da cultu- ra: anseios conflitivos, frustrações pelas perdas e prazeres. Ainda que constitua o primado realista da experiência individual, a Moda Caipira de raízes possui características que a aproximam da estética romântica, na concepção formal e no modo sentimental como os temas e perso- nagens, heróis e anti-heróis surgem e ressurgem.

Um romantismo, claro e enfático, falando de temas estabilizados e paixões imediatas como os enlaces do amor e dor, permeia a con- cepção estética do cantar caipira. Um sentimentalismo perpassa vagueante cada vereda de seus versos, deixando-o com um langor emotivo e copioso, um lirismo apaixonado, avesso às racionaliza- ções. A viola caipira (além das violarias como o violão e cavaquinho), no mundo rural de antigamente, expressa ossuspiros poéticos e sauda-
des, lembrando Gonçalves de Magalhães, nos alvores do romantis-

mo, só que uma saudade temperada das três raças as quais, hoje, nos fazem ser aquilo que perdemos e, aqui-mesmo, o fizemos renascer. Por isto, entremeada de um clima nativista, em cada moda flui uma atmosfera que leva à meditação sobre aquilo que transcende a realida- de brusca. Neste clima, o escritor de modas constrói seus castelos nas alturas, e pode os exprimir numa coesão rápida e sinestética de ima- gens como as que se realçam no pagode de viola a seguir:
Passo por cima das nuve
Esbarrado no trovão,
Desço no pingo da chuva
75 Depoimento prestado no programaEnsaio, dirigido por Fernando Faro,
transmitido em 07.mai/9l pela Rede Cultura de Televisão – São Paulo.
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Bem no risco do clarão,
Tiro água no deserto,
Faço poço no areião.
(Na Barba do Leão,
de Lourival dos Santos e Priminho, 1977)
Esta disposição criativa, já mencionada por Schiller em Poesia Ingê-
nua e Poesia Sentimental, é interpretada por Vítor Manuel de Aguiar e

Silva: “a criação poética, no romantismo, mergulha profundamente no domínio onírico e esta irrupção do inconsciente na poesia assume não somente uma dimensão psicológica, mas também uma dimen- são mística, integrando-se na concepção da poesia como uma revela- ção do invisível e na concepção do universo como um vasto quadro hieroglífico onde se reflete uma realidade transcendente. Por outro lado, o elemento onírico oferece um meio ideal de realizar a aspiração criadora, no sentido mais profundo da palavra, do poeta, permitindo identificar poesia e reinvenção da realidade”.76

Considere-se também que a arte do povo, como seu dia-a-dia, tem um olho preso às tradições e outro bem esperto voltado às “belezas das classes dirigentes”, particularmente o senhorio desse mesmo povo. Assim, o artista popular quando tem acesso a essas “belezas”, quando lhe são importantes, impressionantes ou “ro- mânticas”, e à medida que lhe convier, ele as copia ou as imita. Daí porque a Moda Caipira de raízes representa, em essência, a continui- dade do ideário ufanista de afirmação nacional que se deu no roman- tismo, às vezes agônico, às vezes eufórico.

Outro fator de aproximação com o romantismo se dá na pontu- ação melódica do verso, a propiciar uma atmosfera de oralidade, o tom de poesia recitativa criada para a eloqüência dos sarais e salões, que os caipiras reeditam nas suas poesias para serem declamadas (ou lidas em silêncio como se fosse em voz alta) e nas partes recitativas das toadas. Se os românticos citadinos recitavam ao som boêmio da viola, violão e piano, os caipiras do campo ainda o fazem no entre- meio enluarado e inspirado da viola.
76AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura - I, p. 554.
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Para clarear o assunto, acompanhemos o seguinte pagode de viola de Tião Carreiro e Lourival dos Santos (Lourival dos Santos, Guaratinguetá - SP, 1907-1997). Nele – veremos – especificam-se as muitas categorias de idealizações, emotividades, visões oníricas e ex- pansões dapsique latentes na Moda Caipira. Em suas estâncias estróficas, formula umcanto de aurora e auto-estima. A voz do cantador-violeiro, como no romantismo, apresenta-o como o vate, o sujeito resolvido, o ser predestinado, o indivíduo criador que, pelo instinto, densidade emotiva, inspiração e determinação humana, tem o poder de tudo, inclusive da poesia como missão:
CHORA VIOLA
pagode de viola
Tião Carreiro / Lourival dos Santos
Eu não caio do cavalo,
Nem do burro, nem do gaio,
Ganho dinheiro cantando,
A viola é meu trabaio,

No lugar onde tem seca Eu de sede lá não caio... Levanto de madrugada
E bebo o pingo do orvaio,
Chora, viola!
Não como gato por lebre,
Num compro cipó por laço,
Eu num durmo de botina,
Não dô beijo sem abraço,
Fiz um ponto lá no mato,

Caprichei e dei um nó... Meus amigos eu ajudo, E inimigo eu tenho dó, Chora, viola!
A lua é dona da noite,
O sol é dono do dia,
Admiro as mulheres
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Que gostam de cantoria,
Mato a onça, bebo o sangue,
Furo a terra e tiro o ouro...

Quem sabe agüentá saudade,
Não agüenta desaforo,
Chora, viola!
Eu ando de pé no chão,
Piso por cima da brasa,
Quem não gosta de viola,
Que não ponha o pé lá em casa,
A viola está tinino,
Cantador tá de pé...
Quem não gosta de viola
Brasilero bão não é,
Chora, viola!
(Tião Carreiro e Pardinho,Pagodes, 1977)
* * *

Neste ponto vale sublinhar um fenômeno que sinto ocorrer no âmbito da recepção da Moda Caipira. Mesmo que surja uma moda nova, hodierna e factual, logo que se dissipam os liames com a novi- dade, ela se agrega ao imaginário do povo como se fosse tradicional, quer dizer, como suposta variante de uma formulação antiga. Daí porque as transformações naturais que vieram ocorrendo, e mesmo considerando os abrandamentos morfológicos de um vernáculo semidialetal apropriado à veiculação em disco, nunca se desagregam do conceito dede raízes. Brinquemos de fazer de conta: uma virtual moda-de-viola sobre a morte do piloto de Fórmula-1, ou da princesa de Gales, em pouco tempo se transforma em variante do registro da morte dum personagem tradicional e, em última instância, na tragé- dia mítica do herói ou da donzela bondosa. Ou seja, superada a consagração do instante, instaura-se outra vez o charme do arcaico, do
cavalheiresco.
* * *
Como acontece com os demais afluentes de manifestações da
Literatura Popular, escreve Luís da Câmara Cascudo, “há uma assis-
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tência obstinada para essa literatura, em voz alta, lenta, ou arrebatada e tatalante nas passagens emocionais ou belicosas. Essa literatura é poderosa e vasta. Compreende um público como não sonha a vaida- de de nossos escritores [consagrados oficialmente]. O desnorteante é que ninguém guarda o nome do autor. Só o enredo, interesse, assun- to, ação enfim, gesta...”.77De fato, no quadro primitivista da Moda Caipira o que interessa é o arrebatamento do tema envolvendo um personagem, o enredo de que se nutre a fábula. A palavra não é espetáculo em si mesma, como na poesia dos livros; o espetáculo se dá pela conexão dialógica da palavra com o mundo cultural. E, assim, o fazer poético da Moda Caipira de raízes difere em essência daquilo que comumente é designado de “literatura da modernidade”. Trata- se de um fazer poético que nunca se desagrega de sua função especu- lar: a raiz do inhame, a primitividade indígena e africana, o passionalismo ibérico... as vivências e sonhos da população rural.

Câmara Cascudo relembra que a dança pura “para recreação é con- quista milenar do homem às exigências dos cultos rurais”.78No mundo caipira, a associação da dança com a letra de fundo religioso, utilizada como forma de evangelização nos inícios quinhentistas, existe até hoje em alguns locais. Em Dois Córregos – SP, a própria missa e alguns rituais de fé persistem acompanhados da moda e danças caipi- ras. Mas, em geral, bipartiu-se em dois ramos: o bailado, por um lado, a revezar nas “funções” ou “fandangos”79 com o canto puro, por outro. Entre os bailados, a folclorista Oneyda Alvarenga (Varginha-MG, 1911-1984) pôde registrar as danças coletivas Caninha Verde e Cateretê, e as danças religiosas-profanas com canto das Folias

77CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil, p. 27.
78CASCUDO, Luís da Câmara.Di cionário do Fo lclor e Br asileir o, p. 279.
79O caipira utilizava comumente, até finais do decênio de 1950, quando se

deu a reviravolta do êxodo rural, o termo “fandango” como sinônimo de “festas com bailes e cantorias”. No mesmo sentido se usavam os termos “cateretê”, “samba”, “pagode” e “catira”. O fandango, como música e dança, de origem discutível, foi introduzido no Brasil pelos portugueses. Tem a viola caipira como instrumento básico. Por esse motivo, sua identificação com a própria festa caipira. O bate-pé do fandango aproxima-o do catira, da cana-verde e outros bailados que intermedeiam a cantoria, geralmente a moda- de-viola de longa extensão. Como se sabe, antes do primeiro disco de Moda Caipira, em 1929, uma moda podia se alongar por duas, três horas de duração.
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de Reis, na zona caipira compreendida por Atibaia, Carapicuiba, Itaquaquecetuba, São Paulo (SP) e Lambari (MG).80 Presenciei o ritu- al de fé da Dança das Fitas de Parati-RJ, em que os festeiros, cantando, vão enovelando um mastro, como símbolo de um abraço comunitá- rio, e, em alguns lugarejos das imediações, a Dança do Caranguejo, a Dança do Marra-paia, alusiva a um seqüestro ao Menino Jesus e, por isto, implica o uso de adereços marciais (bastões ou bordunas indíge- nas) ritmando o canto. Em Parati, como em Divinópolis-GO, a mais importante congregação comunitária realiza-se com a Festa do Divi- no. A folia sai pelas zonas rurais arrecadando donativos para os po- bres e prendas para a festa. No dia de Pentecostes, festeja-se a colheita, obra e graça do Divino Espírito Santo, com um lauto almoço, como se fosse para o Imperador. A fila para a comida, pois, que atrai signi- ficativa parcela da população, é símbolo de humildade, e o comer em grupo, súplica para que nunca falte o de comer na mesa da família. Devotos e festeiros cantam e dançam por uma novena, num entre- meio do litúrgico e o profano. A dança da Quadrilha do ciclo de São João (comemoração da colheita agrícola, do solstício europeu, princi- palmente ibérico), que se realiza em todos os rincões do país, princi- palmente no Nordeste, caracteriza-se pelo imbricamento do religioso e profano. As festas juninas são tão significativas no folclore brasilei- ro que, segundo contam, em Campina Grande, Paraíba, onde tive oportunidade de estar, o político nordestino que não participa da quadrilha sequer se elege vereador de pequena cidade. Pensando espe- cificamente na poesia-música, pauta deste Ensaio, mais adiante vere- mos as implicações ritualísticas da festa caipira, envolvendo a comple- xidade artística dos encontros do instrumento, da voz, da poesia, no seio da coletividade caipira. É importante observar que, ritualísticas, as festas sazonais permitem a atualização de um tempo circular que sempre volta às origens, que alimenta a expectativa festiva dum dia melhor. É como se o dia de hoje se alimentasse da esperança do próximo dia-santo-de-guarda. O perpétuo passo-a-passo do tempo parece estagnado, no aguardo de que as coisas mudem. Enquanto isto, nada acontece que não uma perpétua esperança, ninguém enve- lhece, ninguém padece da decrepitude. Parece que, no rocio, o ritmo
80Catálogo Histórico-Fonográfico — Discoteca Oneyda Alvarenga— Centro Cultural
de São Paulo — Série Catálogo Acervo Histórico nº 1, outubro/1993.
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do mundo fica em suspenso, nutrindo-se da seiva da tradição. Escre- ve Roberto DaMatta que “todas as festas – ou ocasiões extraordiná- rias – recriam e resgatam o tempo, o espaço e as relações sociais. Nelas, aquilo que passa despercebido, ou nem é mesmo visto como algo maravilhoso ou digno de reflexão, estudo ou desprezo no cotidiano, é ressaltado e realçado, alcançando um plano distinto”.81
81DAMATTA, Roberto. O Que Faz o brasil, Brasil? p. 81.
Ilustração n.4– Zé Gato e Tião Canhoto
(dupla de violeiros da Casa de Detenção, São Paulo).
Nanquim de Daniel Firmino da Silva (1991).
* * *

Os pagodes, como festas de socialização, nalguma varanda ou no terreiro ao pé-do-fogo, estão ligados às colheitas, à entreajuda dos vizinhos e amigos pelos mutirões, ao patrocínio dos santos e dos patrões, à comunhão corporativa, confraternatória e deliciante do almoço, da merenda e jantar, do calibre de uma boa pinga (“que só faiz bem pra saúde”) e, como fecho, da Moda Caipira e do baile. São terapias que mandam embora a solidão e as querências malo- gradas, chamando benquerença. Acontecem à noite, não só porque é hora de folga. No Brasil, como em Portugal e Espanha, relatam os
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folcloristas, contar histórias de dia faz criar rabo. Nessa crença, claro, está embutida a restrição pelo olhar severo do patrão à quebra do ritmo laboral. Ademais, o escurão da noite é uma janela para o enlevo do sonho, virando contos, cânticos, causos e cantorias. So- nho que principia pela excitação deliciante e ritualística da dança. Dizem Tonico e Tinoco que
Baile na roça, meu bem,
Se dança assim:
Pego na cintura dela e ela
Tarraca em mim...
(Tonico e Tinoco, Viva a Viola, 1991)

Na hora da lida, canto só é permitido quando não interrompe a jornada de trabalho. É societário, no anonimato da labuta em tur- ma, nos mutirões de capina, colheitas em geral, no corte da cana e panha da laranja. Dispersos em eitões, os bóias-frias cantam ritmados pelo movimento das ferramentas uma toada que adquire ares tristonhos, desenraizados; entoam uma ladainha de vozes espalha- das, às vezes duetada, marcada pela monotonia rítmica do trabalho. Outras vezes, simplificando a melodia e ressaltando apenas a letra, emitem no todo um canto monódico que, ouvido de longe, se assemelha a um gemido sentido, amolado, a um murmúrio vocálico, canto gregoriano alastrado aos quatro ventos.
* * *

Um dos temas muito ocorrentes na Moda Caipira de raízes são ascantigas de campeão e deabatê campeão, em que, na exaltação do eu- poemático, o modista exibe seus dotes de versejador incomparável e o orgulho da valentia que o faz entestar com qualquer adversário fazendo-o depor a viola e calar-se. E é celebrizado por isto. Realiza uma poesia que conta o que se canta, e o modista ou cantador. Revela a autoconsciência do valor da poesia, como realidade significante nela própria e como a projeção significativa em seu ambiente societário. Exemplo ilustrativo encontra-se na seqüência de sextetos e quadras da moda-de-viola Pé Cascudo (1962), um dos maiores sucessos da dupla Vieira e Vieirinha:
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PÉ CASCUDO
moda-de-viola
Vieira / Oscar Martins
Nesse tempo tudo forga
Só minha vida é apertada,
O povo diz que não acha
Serviço de camarada,
Eu trabaio até de noite
Pra dá conta da empreitada!
Pego moda por empreita
Pra inventá e pôr toada,
Invento moda na linha,
Nos campeão dano lambada!
(Vieira e Vieirinha,
30 Anos de Viola e Catira, 1980)

Nesses versos, o mais importante é inventar “moda na linha”, quer dizer, produzi-la de acordo com os conformes musicais, pa- drões versificatórios da letra e artesania geral herdados pela tradição e legitimados pelo saboreio do povo. Permeia, por assim dizer, uma espécie deinteligência compositiva dada pela informação sensorial do ritmo em seu estado mais confortável, aquele habituado e consagra- do pela elocução oral. A própria melodia, ordenada e previsível, é colocada em segundo plano, estereotipada, como acontecia na execu- ção das cantigas galego-portuguesas e do Romanceiro tradicional.

É interessante compreender o sentido da expressãomoda na linha, nos versos que acabamos de ver. Mesmo que tenhamos a consciência de que o cantador-campeão “abate” seu adversário a poder de orna- mentos criativos que o colocam em xeque, principalmente num tor- neio de desafio, de modo geral o artista popular não se nutre e nem vive o conflito da superação dos limites do outro, como é comum nas esferas letradas. A chave do sucesso é a tradição, o “enraizamento”. Vale observar que tradição ou enraizamento e sua fortuna de bens simbólicos forçam o retorno de situações passadas, para legitimar o
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física, e doendo, doendo... Por isto é popular, para os patronos do povo. Mas o povo cria, mas o povo engenha, mas o povo cavila. O povo é o inventalínguas na malícia da mestria, no matreiro da maravilha, no visgo do impro- viso, tenteando a travessia... O povo é o melhor artífice.13
13Isto não é um Livro de Viagem: 16 Fragmentos de Galáxias: “Circuladô de Fulô”,
de Haroldo de Campos. CD. Ed. 34, Rio de Janeiro: 1992.
14Apud. GARCÍA DE ENTERRÍA, Maria Cruz. Romancero Viejo, p. 51.
15SPITZER, Leo.Estilo y Estructura en la Literatura Española, p. 145.
Ilustração n.1– Capa do Cancionero de Romances
de Martín Nucio (sem data).14

É num parâmetro similar a este que se enquadram as manifesta- ções da Moda Caipira de raízes, seus escritores de músicas e cantadores. De origem peninsular, nela se encontram resíduos for- mais, decalques e vestígios de motivos estilísticos e temáticos do Romanceiro tradicional ibérico, “essaIlíada espanhola sem Homero” – como escreveu Spitzer15 –, que se espalhou pelas letras românicas e quatro ventos da Europa. Confabulando com motivos literários antigos que incursionam pelo mundo medieval, a Moda Caipira de raízes remoça metáforas e instâncias temáticas profundamente agregadas na cultura, como a tópica exordial, a do final feliz, a da invocação da natureza, do lugar ameno e bucólico, a da peroração, a
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das invocações bíblicas, a do passado feliz que não volta mais, a da moça roubada, a do homem mal, de coração satânico, a da rapariga pecadora, a do mundo às avessas, a da morte domada, a do pobre virtuoso, a das transformações zoomórficas, assombradoras ou angelicais, a da força das premonições e vaticínios, todas muito freqüentes e determinantes de núcleos temáticos e enredos nas can- ções de gesta e no Romanceiro tradicional. Neste sentido, trata-se de umac r i o u l i z a ç ã o da literatura escrita. Disto se explica porque, ao aproximar-se de nossa época, agregam-se na Moda Caipira tantas vibrações da estética romântica, esta que, em muitos aspectos, se configura pelo apreço ao medieval. É oportuno lembrar que os padrões formais consolidados em poesia e que se expressam no etnotexto ibérico funcionam como faróis a abrir caminho para as variações conformes à vicissitude vital do mundo hispano-america- no. Se fosse diferente, e se no Novo Mundo se reproduzissem os mesmos padrões, a estrutura poemática seriaf ó r mu l a e nãof o r ma. E assim se explica por que a redondilha, tão freqüente na Moda Caipi- ra de raízes (e outras manifestações brasileiras), embora tão parecida com o modelo antepassado ibérico, é peculiar em suas relações har- mônicas, principalmente rítmicas. Existe uma poética da oralidade, da qual a literatura tipográfica se desviou, formando seus cânones e meios. Porém não raro acontece que, quando a grande literatura quer respirar e restaurar a limpidez da origem, volta às fontes da oralidade. Então, é injusto afirmar que um poeta popular é “exce- lente” porque seu estilo se aproxima ao de um poeta erudito. Digo isto porque é comum encontrarmos o vezo em citar procedimentos estilísticos de um poeta “aceito classicamente” como abonadores e justificadores de artimanhas estéticas freqüentes na poesia de tradi- ção oral. Na Moda Caipira ressoam e sobrevivem as canções lauda- tórias e heróicas que são fontes das canções épicas, aristocráticas;16
16Arnold Hauser escreve que “a ‘épica popular’ da história literária do roman-

ce não teve, originalmente, relação alguma com o povo. As canções laudató- rias e oslieds heróicos, que são a fonte das canções épicas, eram da mais pura qualidade poética que uma classe dominante jamais produziu. Não eram nem criadas, nem cantadas, nem difundidas pelo ‘povo’, nem intencionalmente destinadas ou musicadas para a mentalidade do povo. Eram estruturalmente poesia artística e de uma arte aristocrática”. (História Social da Literatura e da Arte - I, p. 228).
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assim, o historicismo ainda que idealizado ou legendário doCantar
del Mio Cid (Rodrigo Díaz de Vivar, chamado Cid pelos mouros e
Campeador pelos cristãos), supostamente escrito em 1140, e outras

gestas dosjuglares, as letras moçárabes do século XI, de tradição oral e cantadas, as cantigas paralelísticas galego-portuguesas cultas (can- tigas de amor) e populares (cantigas de amigo), tremulam como bases de grandes escritores peninsulares, brasileiros e hispano-ame- ricanos. Entre eles se evidenciam Garcilaso de la Vega, Frei Luís de León, Lope de Vega. As primitivas gestas castelhanas e o Romanceiro tradicional tiveram seu esplendor no teatro doSiglo de Oro –, Gil Vicente (com vários autos explicitamente romanceados); Sá de Miranda, Camões, Góngora, Gregório de Matos, Quevedo, pas- sando pelo fundador do romantismo espanhol Duque de Rivas (Romances Históricos, 1841), além de José de Espronceda e o portu- guês Almeida Garret (Camões, 1825,D. Br a n c a, 1826, eAd oz i nd a, 1828, de sua fase romântica, mais tarde incorporados aoRomanceiro
e Cancioneiro Geral, 3 vols. – 1843-1851. São também de Garret os

chamados “romances reconstruídos, realizados de paráfrases e fantasi- as poéticas sobre os romances e outras expressões de tradição oral). É preciso citar Gonçalves Dias (Sextilhas de Frei Antão, 1848), Casimiro de Abreu (vários poemas dePrimaveras, 1859, um deles, romancea- do, tendo como tema a própria viola: “queixume do mar que rola/ cantiga em noite de lua/ cantada ao som da viola). Entre os mais recentes, figuram o argentinogauchesco José Hernández (Martín
Fierro, 1872), o modernista cubano José Martí (Versos Sencillos, 1891),
o argentino Enrique Banchs (Elogío de una Lluvia, 1908), os espa-
nhóis E. López Alarcón (com a peça Gerineldo, Poema de Amor y
Caballería Compuesto en Parte con Pasajes del Romancero, 1909), Jacinto

Grau (El Conde de Alascos, Tragédia Romanesca, 1917) e Gerardo Diego (Romance de la Novia, 1918), García Lorca (Romancero Gitano, 1924-27, e tragédias andaluzas), Salvador de Madariaga (Romances de Ciego, 1922), Miguel de Unamuno (Romancero del Destierro, 1928) e Anto- nio Machado, da geração espanhola de 98, o modernista argentino Leopoldo Lugones (Romancero, 1924), Cecília Meireles (Romanceiro
da Inconfidência, 1953), Ariano Suassuna (Auto da Compadecida, 1955),

João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina, 1954-55, e outros poemas em voz alta), Ferreira Gullar (Romances de Cordel, 1962-67) e tantos outros.
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A respeito das reevocações temáticas e da apropriação pelo poeta popular de obras literárias consagradas pelo gosto geral, modifican- do-as ou trazendo para o primeiro plano episódios mais impactantes, há que sublinhar que era comum esses excertos serem desgarrados das antigas gestas épicas medievais e transformados em formas poemáticas designadas por romances. Vale lembrar que os Romances tradicionais eram textos musicais-recitativos realizados para uma só voz, geralmente, com acompanhamento instrumental – principal- mente avihuela [viola] de mano –, de maneira a se evitar que a relevância enfática do enredo não se diluísse nos artifícios melódicos e nuanças da prosódia musical. Eles se caracterizam então, genericamente, como episódios baladísticos derivados das extensas epopéias medievais. Com o passar do tempo, observa Pedro M. Piñero e Virtudes Atero, “os novos gostos facilitariam a que, independentes já das gestas me- dievais, nascessem outros romances de assuntos históricos e nove- lescos, relacionados a acontecimentos coetâneos, ao mesmo tempo que receberiam influências de outras fontes poéticas, como, principal- mente, das baladas européias com as quais tanto têm em comum e que asseguram ao romanceiro uma modalidade lírica e contribuíram para fixar determinadas formas métricas”.17Em certa altura da Idade Média, a palavraromance (rimance ou romanço) designava o linguajar do povo. Nessa época ainda não havia caracterização definida entre Lín- gua Portuguesa e Língua Espanhola. De relance, gostaria de acrescen- tar que os autos do artista-apóstolo Padre Anchieta (Auto da Festa de
São Lourenço por exemplo), escritos já no século XVI, na capitania de

São Vicente para serem representados pelos indígenas, foram escritos numa mistura de línguas portuguesa, tupi-guarani e espanhola, a chamada “língua brasílica”. Essa era a língua geral dos índios e dos lusitanos indianizados. Pode-se afirmar, pois, que o teatro no Brasil nascia apoiado numa espécie de “romance brasileiro”.
O vocábuloromance provém do advérbio medieval latino romanice
(romanice loqui – falar em língua românica), em contraste comlatine
loqui(falar em latim), a língua das camadas nobres e clericais. Este

sentido se confunde com a forma poemática predileta, primeiramen- te dos círculos aristocráticos, e após, dos estratos populares. Por vias latinas e pela mestiçagem lingüística dos romanços, a poesia popular
17ATERO, Virtudes e PIÑERO, Pedro M. Romancer o de la Tradición Moder na, p. 12.
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herda a seiva da antigüidade clássica. O Romance Tradicional recebe essa nomenclatura pelo fato de ser uma obra lírico-narrativa trans- posta para o idioma local, o romanço. Luís da Câmara Cascudo ob- servara confirmações disto e anota que no final do romance de Calila
e Dimna lê-se: “aqui se acaba el libro de Calila e Dimna, et fue sacado

del arávigo en latin erromançado por mandado del infant don Alfon, fijo del muy nobre rrey don Fernando, en la era de mill e dozientos e noventa e nueve años”, que significa que foi traduzido er omançado, do latim (versão do árabe) para or omanço ibérico. Nicolas de Piamonte, abrindo sua tradução de Carlos Magno, em 1525, explicava: “...yo Nicolas de Piamonte propongo de trasladar la dicha escriptura de lenguaje frances enromance castellano, sin discrepar, ni anadir, ni quitar cosa alguma de la escriptura francesa”.18 Neste ponto é profícuo aduzir – informam os pesquisadores – que em nenhum documento anterior ao século XV se encontra empregada a palavraromance ou romanço como designação do gênero poemático. A primeira vez, relata Menéndez Pidal, aparece no Proemio do Marquês de Santillana (esta- dista López de Mendoza, 1398-1458), publicado em língua români- ca, e não em latim, em versos geralmente octossílabos,19 freqüentemente com rimas assonantes nas linhas pares. Assim consi- derado, à parte a admirável fortuna de saberes e as minuciosas refe- rências e estudos como os contidos no Romancero Hispánico (Hispano-
Portugués, Americano y Sefardí), tomos I e II, o mestre Menéndez Pidal

define oromance com extrema concisão: “poemas épicos-líricos bre- ves que são cantados ao som de um instrumento, seja em festas dançantes, seja em reuniões ensejadas para o recreio simplesmente, ou para o trabalho comum”.20
O romance preferido dos músicos, historiam vários autores, era
El Conde Claros,história cavalheiresca de Claros de Montalbán, plena
de paixões e excitações pelo tumulto da vida, com seus 420
octossílabos, muito difíceis de serem cantados na seqüência integral.
18Apud. CASCUDO, Luís da Câmara Literatura Oral no Brasil, p. 213.
19 De acordo com o padrão grave da metrificação espanhola, mais adequado ao

espírito paroxitonal da Língua Portuguesa. Este padrão é o adotado pelo Grupo de Estudos “Literatura e Cultura Popular”, sediado na UNESP de São José do Rio Preto-SP. As avaliações estilísticas contidas neste Ensaio terão pressupostos esse padrão métrico.
20MENÉNDEZ PIDAL, R. Flor Nueva de Romances Viejos, p. 7.
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Cito um trecho desse romance antigo e atentemos para o intrincado jogo semântico e sua musicalidade. Arbitrariamente – os romances antigos não eram estrofados –, vamos dispor os octossílabos em dois blocos estróficos (dois sextetos), para que se possa perceber com mais facilidade o caráter funcional do desenvolvimento cíclico de uni- dades narrativas, culminando pela cadência das pausas, e sua eficácia poemática comoletra de música, a propiciar voltas repetitivas da mes- ma melodia.
EL CONDE CLAROS

Las hijas del rey chiquito Todas andan a un igual, Todas visten un vestir,
Todas calzan un calzar,
Todas dicen a una voz:
La infanta preñada está.
–Si la infanta está preñada
Caso es que parirá.
Vino tiempo y pasó tiempo,
Que la sacan a quemar,
Con quince carros de leña
Y más que van a buscar.21
***

Osvihueleros ouvihuelistas, como eram conhecidos na Península Ibérica, e que ficaram sendo os nossos violeiros, preferiam executar apenas os trechos prediletos, ou preferidos de seus ouvintes, de um romance lírico-narrativo de larga extensão. Acrescente-se ainda que, se até o século XV era manifestação puramente oral, há que mencionar, segundo Menéndez Pidal que, de todos os gêneros poéticos penin- sulares, o romanceiro foi o que mais ocupou as tipografias do século XVI, em forma depliegos sueltos, análogos aos folhetos de cordel (colportage, na França,chapbook, na Inglaterra,folhetos volantes ou c ordel, em Portugal) tão queridos no Nordeste brasileiro. A partir daquele período, entraram na moda também na forma escrita, não como coletânea ou antologia reunida como preservação dos haveres cultu-
21 Apud. COSSIO, José Maria de. Romances de Tradición Oral, p. 43-4.

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rais e artísticos, mas para fins de consumo de massa, para o deleite
requerido pelas gentes.

Para elucidação da projeção temática e dos códices do Romanceiro tradicional, pela transmissão oral, tão em voga nos séculos XIV e XV, nos romanceiros modernos orais e escritos, baladas e nossas Modas Caipiras, é necessário citar quatro dos principais e mais comovedores conteúdos do Romanceiro, de acordo com a classificação bem simplificada e didática de Guillermo Díaz-Plaja, à qual complementamos com observações de Dámaso Alonso:22

a)Romances que fazem referência à história antiga. – São episódios tirados da Bíblia ou dos historiadores gregos e romanos. Existem, por exemplo, romances sobre o “Sacrifício de Isaac”, “O Pecado Ori- ginal”, “O Nascimento de Moisés”, sobre a Samaritana; sobre o in- cêndio de Roma; sobre a tomada de Numancia, etc.

b)Romances que fazem referência à história peninsular. – São os mais importantes. Seus heróis são o rei Don Rodrigo, o Cid Campeador, Bernardo del Carpio, o Conde Fernán Gonzales, os Sete Infantes de Lara, Ximena pedindo justiça, Don Sancho e Doña Urraca. São notá- veis os romances fronteiriços da guerra de Granada, e os do ciclo de Don Pedro,el Cruel, assim chamado por envenenar a esposa, Dona Blanca de Borbón. Cada romance se define por um tema concreto, abarcando quase toda a história medieval peninsular e de parte da Europa, comoExpulsión de los Judíos de Portugal. Incluem-se nesta categoria aqueles que constituem verdadeiros ciclos, como a fábula de Don Rodrigo e a perdição da Espanha – de seu pecado à sua penitên- cia e morte, formando em conjunto uma espécie de unidade poemática. Sobre esses enredos, existiram antigos cantares de gesta; deles, como foi mencionado, os romances aproveitaram elementos que pareciam de maior interesse e emoção.
Por sua riqueza descritiva, certamente carregada de intensidade
dramática, vale a pena citar o seguinte trecho de um romance velho:
De cómo el rey Don Rodrigo perdió a España, transcrito na forma de dois
hemistíquios octossílabos, assonantados os versos pares, conforme
aparece em várias coleções:
22DÍAZ-PLAJA, Guilher mo. Historia de la Literatura Española, p. 73-8; AL ONSO,
Dámaso.Cancionero y Romancero Español, p. 9-19, e MENÉZEZ PIDAL, R.Los
Romances de América y otros Estudios.
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Las huestes de don Rodrigo — desmayaban y huían cuando en la octava batalla — sus enemigos vencían. Rodrigo deja sus tiendas — y del real se salía;
solo va el desventurado, — que no lleva compañía.
El caballo de cansado — ya mudar no se podía,
camina por donde quiere, — que no le estorba la vía.
El rey va tan desmayado, — que sentido no tenía,
iba tan tinto de sangre, — que una brasa parecía.

c)Romances de tema francês. – Carlos Magno, o rei dos francos e Imperador do Ocidente no século VIII, e seus cavaleiros são muito citados. Incluem-se imitações da Chanson de Roland (conhecido desde antes do ano de 1080)23 , em que o Imperador descobre, desolado, os cadáveres de Roldão, Oliveiros e Turpim. Pertencem ao ciclocar olíngio e dele fazem parte romances notáveis como El Sueño de Doña Alda, El
Conde Claros y el Emperador, Nacimiento de Montesinos, Miliselda y Don
Gaifero, Roncesvalles...; fazem parte também dessa classificação os he-
róis do ciclobr etão, especialmente figuras heróicas como Lançarote.

d)Romances lírico-narrativos. – Incluem-se nessa classificação uma série de romances que narram histórias de amores e de intrigas – Bernal Francês, a BelaMalmaridada (um dos enredos preferidos dos
vihuelistas, juntamente com La Mañana de San Joan), Branca-flor... –

ou aqueles em que ojuglar (cantador) canta seus amores e desenga- nos. Os romances de enredos novelescos e líricos são, em geral, carre- gados de imagens de ponderável intensidade lírica, como a história de Amadís, o mais famosocaballero do século XVI, ou como o seguinte excerto, em que um navegante se vê glorificado pela sua profissão no mar:

Por Dios te ruego, marinero — dígasme ora ese cantar.
Respondióle el marinero, — tal respuesta le fue a dar:
–Yo no digo esa canción — sino a quien conmigo va.

Ou aquele, repleto de subentendidos e certa malícia, em que uma missa é interrompida pela entrada de uma bela mulher. Um jogo fonossemântico se instaura:
23LAATHS, Erwin.Historia de la Literatura Universal.
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El abad que dice la misa, — no la puede decir, non;
Monacillos que le ayudan, — no aciertan responder, non:
Por decir “Amén, amén”, — decían “Amor, amor”.
24Apud. GARCÍA DE ENTERRÍA, María Cruz. Romancero Viejo, p. 48
Ilustração n.2 – Romance de Amadís y Oriana,
umpliego suelto de cerca de 1515-1519.2 4
Não gostaria de deixar de citar os dísticos octossílabos de Con
Pavor Recordó el Moro, pela intensidade emotiva e artificiosidade
paralelística, assim como por sua construção à base de imagens irôni-
cas que se fizeram tão comuns no romantismo:
Con pavor recordó el moro — y empeçó de gritos dar:
Mis arreos son las armas, — mi descanso es pelear,
...........................................................................
Mi cama las dura peñas, — mi dormir siempre es velar
Mis vestidos son pesares — que no se pueden rasgar.
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E, pela perenidade “da maldita esposa infiel”, o seguinte trecho
de octossílabos assonantados:
LA ESPOSA INFIEL
Estaba una señorita
Sentadita en su balcón,
Pasó por allí un soldado
De muy mala condición
Y la dijo: –Senhorita,
Con usted durmiera yo.
–Suba, suba, caballero,
Dormirá una noche o dos,
Que mi marido fué a caza
A los montes de León,
Y para que acá no vuelva
Le echaremos maldición:
Cuervos le saquen los ojos,
Águilas el corazón,
Se caiga de un risco abajo
Y muera sin confesión.25

Variantes do Romanceiro tradicional se alastram por toda a Europa e América hispânica. A título de ilustração, convido o interlocutor para comparação de um romance antigo peninsular e sua variante ocorrente no Chile. Neles se configura o tema primor- dial da jovem sedutora que atrai um pastor, para tirá-lo de seu “paraíso”, num revivenciamento do mito seminal de Adão e Eva e o primeiro pecado:
LA GENTIL DAMA Y EL RÚSTICO PASTOR
Romance Tradicional
Estando un día un pastor — de amores muy descuidado,
Vino por allí una dama. — -Usted me da a mí cuidado.
Mira qué trenza de pelo — qué delgada de cintura.
25 Apud. COSSIO, José María de. Romances de Tradición Oral, p. 60.
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Si te casaras conmigo — gozaras de mi hermosura.
Respondió el bien del pastor: — -Tu hermosura no la quiero,

Tendo el ganado en la sierra — y quiero dirme con ello. –Pastor, que estás enseñado — a dormir en las cabañas, Si te casaras conmigo — durmieras en buena cama.
Pastor, que estás enseñado — a comer pan de centeno,
Si te casaras conmigo — comieras de pan y bueno.26
LA DAMA Y EL PASTOR
Romance Chileno
–Pastor que andas por la sierra — pastoriando tu ganado,
Si te casaras conmigo — salieras de esos cuidados.
–Yo no me caso contigo, — responde el villano vil,
El ganado está en la sierra, — adiós, que me quiero ir.
–Como estás acostumbrado — a andar con esas ojotas,
Si te casaras conmigo, — te pusieras buenas botas.
–Yo no me caso contigo — responde el villano vil,
El ganado está en la sierra, — adiós, que me quiero ir.
–Como estás acostumbrado — a comer galletas gruesas,
Si te casas conmigo — comieras pan de cerveza.27
* * *

Os quinhentistas portugueses são depositários da tradição oral- popular, a exemplo de Camões e Jorge Ferreira de Vasconcelos. Após certo arrefecimento, no período neoclássico, é no romantismo que se reabilita definitivamente o Romanceiro tradicional, projetando-o em direção ao século XX, ainda que em sua condição puramente escrita (os estudos sobre a relação palavra-música ainda estão por fazer). Entre as coletâneas portuguesas destacam-se desde Garrett (Romanceiro, 1843-50) às de Teófilo Braga (Floresta de Vários Romances, 1869 e os três tomos do Romanceiro Geral Português, 1906-9), e de Victor Eugénio Hardung (Romanceiro Português, 1877). Garrett, no prefácio de Adozinda (1828), escreve que “de pequeno me lembra que tinha um prazer extremo de ouvir uma criada nossa em torno da qual nos reuníamos
26 Apud. Idem, p. 121-2.
27Apud. MENÉNDEZ PIDAL, R. Los Romances de América y Otros Estudios ,
p. 31-2.
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nós, os pequenos todos da casa, nas longas noites de inverno, recitar- nos meio cantadas, meio rezadas, estas xácaras e romances populares de maravilhas e encantamentos, de lindas princesas, de galantes e esforçados cavaleiros. A monotonia do canto, a singeleza da frase, um não sei quê de sentimental e terno e mavioso, tudo me fazia tão profunda impressão e me enlevava os sentidos em tal estado de suavidade melancólica, que ainda hoje me lembram como presentes aquelas horas de gozo inocente, com uma saudade que me dá pena e prazer ao mesmo tempo”. Entrando no século XX, os romances portugueses, em seus textos literários e musicais, foram conhecidos a partir de Velhas Canções e Romances Popular es Por tugueses (1913, de Pedro Fernandes Tomás),Romances e Canções Popular es da Minha Ter ra (1921, de Francisco Serrano), os romances e melodias inseridos no Canci o-
neiro Musical da Galícia(18 42 ), A Canção Popular Portuguesa (1953, de

Fernando Lopes Graça) eCancioneir o de Monte Córdova (1958, de Lima Carneiro).28Comenta o pesquisador açoriano J. M. Bettencourt da Câmara que “o veículo da difusão do Romance tradicional até para- gens longínquas é, evidentemente, o formidável movimento de ex- pansão marítima que, a partir de fins do século XIV, é empreendido pelas duas nações peninsulares. Com os portugueses e espanhóis, impelidos pela circunstância político-social dos dois países para a aven- tura do mar que a lenda medieval povoava de monstros, chegaram às terras descobertas simultaneamente o desejo dos valores materiais que se esperava retirar delas e as formas culturais trazidas da terra de origem, incluindo formas poético-musicais populares ou populari- zadas, como o romance”.29 Para um povo de vocação navegadora, espremido por Castela a empurrar e o Atlântico a libertar (Porto, Portugal...) – pondera Pedro Calmon –, claro que as cordas da viola zuniam nos desembarques portugueses. A época dos descobrimen- tos foi o esplendor da viola em Portugal. Não são poucos os roman- ces marítimos, como o seguinte trecho do Romance da Nau Catarineta, muito próximo do texto consagrado por Garret, e copiado por Sílvio Romero, numa versão rio-grandense:
28CÂMARA, J. M. Bettencourt da. Música Tradicional Açoriana, p. 32-3.
29Ibidem, p. 38. A revitalização do Romanceiro em Portugal é detalhada com
densidade noDicionário das Literaturas Portuguesa, Brasileira e Galega, de Jacinto
do Prado Coelho.
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Não tinham mais que comer,

Nem tampouco que manjar;
Botaram solas de molho,
P’ra no domingo jantar;
A sola era tão dura
Que não podiam tragar.30
* * *

A forma do romance, introjetada e sonoramente automatizada pelo conhecer popular, se reproduz em todos os desvãos da querência brasileira, sedimentando heróis legendários, históricos e verdades coletivas. As façanhas do herói negro ou do herói indígena, por exem- plo, associadas ao padecimento do índio nacional, são registradas em significativa antologia de poemas, a maior parte exaltada pela mundividência romântica do bom selvagem. Tratamento análogo é dado ao preto. O herói guarani José Tiaraiú (ou São Sepé), da guerra das Missões, é cantado no romanceO Lunar de São Sepé, recolhido por J. Simões Lopes Neto em 1902, e citado por Pedro Calmon. Vale a pena admirarmos um certo sabor de arcaísmo próprio do romance e a singela maestria dos seguintes sextetos (ou versos-e-meio, no regio- nalismo caipira):
Eram armas de Castela

Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo, por nosso bem:
Mas quem faz gemer a terra...
Em nome da paz não vem!
............................................
Do sangue dum grão-cacique

Nasceu um dia um menino, Trazendo um lunar na testa, Que era bem pequenino:
Mas era um – cruzeiro – feito
Como um emblema divino!...
30Apud. CALMON, Pedro.Na u Ca tarineta. In:História do Brasil na Poesia do Povo,
p. 17-26.
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Diferente em noite escura,
Pelo lunar do seu rosto,
Que se tornava visível
Apenas era o sol posto;
Assim era – Tiaraiú –,
Chamado Sepé, por gosto.
............................................
Das brutas escaramuças
As artes e artimanhas
Foi o grande Languiru

Que lh’ensinou; e as façanhas
De enredar o inimigo
Com o saber das aranhas...31
* * *

O romance de tradição ibérica sobrevive em várias regiões do Brasil. Câmara Cascudo cita os muitos registros feitos pelo Almi- rante Lucas A. Boiteux no Estado de Santa Catarina, embora sem música; cita também as dezenas de encontros compilados por Rossini Tavares de Lima, nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso, os achados de Guillerme de Santos Neves, no Espí- rito Santo, outros achados de Fausto Teixeira em Minas Gerais.32A maior ocorrência de variantes de temas concretos do Romanceiro tradicional na zona nordestina, e sua menor incidência no períme- tro caipira, demarcado pelas Regiões Centro-sul e Sudeste do Brasil, explica-se pela decisiva relação texto/zona geográfica. Determina- dos temas podem ou não se fixar ou ser incorporados a um lugar, ou determinar variantes adaptadas ao contexto histórico-geográfico da região, ou simplesmente serem suprimidos do processo espon- tâneo da transmissão oral. Isto depende do impacto que o tema e a própria natureza física do poema exercem sobre fatores concretos e legitimados socialmente em cada região. É necessário ressaltar que, em Portugal e Espanha, o mesmo fato se dera, tanto em relação ao Romanceiro tradicional, quanto à sua projeção nas formas roman-
31Apud. CALMON, Pedro. O Bom Índio. In:História do Brasil na Poesia do Povo, de
p. 55-61.
32 CASCUDO, Luís da Câmara.Dicionário do Folclor e Brasileir o, de p. 680-1.
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ceadas posteriores. Há sobre o assunto importantes estudos de
Menéndez Pidal, como Sobre Geografía Folklórica - Ensayo de un Méto-
do, continuado por Diego Catalán e Álvaro Galmés em Como Vive
un Romance33.

Na perspectiva de sua ressonância pela identificação com certas modulações temáticas do Romanceiro tradicional, o Nordeste bra- sileiro é mais permeável ou aberto como disponibilidade de aceita- ção, em vista do mantenimento de certas condições históricas e políticas arcaicas a repercutir nos padrões dominantes da cultura. Franklin Távora, no prefácio de O Cabeleira (1876) escrevera: “Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem as suas aspirações, seus interesses e há de ter, se já não tem, sua política.”.34Explica Souza Barros que “no vasto interior do Brasil, oc o r o n e l , até 1930, exercia todos os poderes de polícia e só algumas cidades se livraram indiretamente desse mandonismo que não deixava de ter uma explicação como estrutura arcaica e necessi- dade imposta pelo isolamento da distância e pela ausência completa de Poder Público”.35 Vigora um patriarcalismo fechado, na tradição do senhor de engenho colonial e do coronel republicano – de bo- tas, rebenque e chapelão –, perseverante em seus eitos de autoritarismo. A dominação alimentada pelo mando do coronel sobre os eleitores matutos é registrada pelo jurista Víctor Nunes Leal, no livro clássicoCoronelismo, Enxada e Voto (1949). A evocação desse sistema, em infindáveis cantares, se realça no excerto de “O Júri”, do paraibano Pompílio Diniz:
Dispois foi preso e jurgado
Pelo Juiz de Dereito

Que tombém é Delegado Cum exirciço de Prefeito... É ele nessa cidade
33Apud. ATERO, Virtudes e PIÑERO, Pedro M. Romancer o de la Tradición Moder-
na, p. 33.
34Apud. COUTINHO, Afrânio.O Regionalismo na Ficção. In:A Literatura no
Brasil,p. 251.
35BARROS, Souza.Ar te , Fo lclor e e Su bdesenv olvime nt o, p. 42.
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Um home de oturidade
E o que fizé tá bem feito!36

O coronel seria “dragão da maldade”, na alegoria cinematográfica de Glauber Rocha. Repetindo formas embrionárias senhoriais do feudalismo, o interesse privado da Casa Grande se sobrepõe ao de- senvolvimento dos interesses públicos, gerando formas localizadas de despotismo. Ainda que, com a Revolução de 1930, a força opressi- va do poder de polícia tenha diminuído em ostentação, esse domínio político persiste até o ocaso do século XX, momento em que me ponho a redigir este Ensaio. Os “coronéis caipiras”, entretanto, agem sob outras fórmulas. Decorre desta dinâmica o fato de que certos enredos do Romanceiro calcados namitologia do cristianismo medieval logo se dissiparam, tiveram pouca ressonância ou rapidamente se transformaram na Moda Caipira, a ponto de dificilmente serem reco- nhecíveis em suas motivações temáticas de origem.
* * *

No entanto, embora não tão freqüentes como nas cantigas po- pulares sertanejas, as Modas Caipiras registram essas remembranças seculares matizadas pela geografia peninsular, ou presentes nos ci- clos de gestas do Romanceiro tradicional. Mas há uma diferença essencial que repercute na menor incidência do Romanceiro, e essa diferença sobrevém do conceito de quem veio a ser o caipira. O habitante rústico gerado no planalto de Piratininga, com sua agri- cultura itinerante, é sempre empurrado para o fundo do sertão, devido à violência da expropriação da terra. Situa-se comumente na rebarba da cultura dominante. Porém, talvez por herança ancestral indígena, enfrenta o desconhecido, e avança em busca de novas terras, em princípio às margens do Rio Tietê. O caipira é enxerto do habitante nativo – índios (principalmente de tribos Xavantes, Guaranis e Caigangues ou “Coroados”, quase dizimadas pelos
bugreiros, nas marchas colonizatórias, entre 1850 e 1910), brancos

ibéricos, “quase-brancos”, pardos, mulatos e negros –, mais o migrante das mesmas cores, vindo das Minas Gerais, empurrado para o interior de São Paulo pelo escassamento do ouro e, a partir
36“O Júri”, de Pompílio Diniz. In: Mané Gonçalo: Poesias. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1959, p. 17.
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do final do século passado, o braço e o coração migrados, principal-
mente da Itália.

Fixando-se na base nativa, após sublinhar que “na verdade, o caipi- ra é de origem paulista; é produto da transformação do aventureiro seminômade em agricultor precário, na onda dos movimentos de pe- netração bandeirante que acabaram no século XVIII”, Antonio Candido ressalta que “a cultura do caipira não é nem nunca foi um reino separa- do, uma espécie de cultura primitiva independente, como a dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e portanto veio na maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português antigo”. Reconhecendo a peculiaridade de ser do brasileiro em suas regiões e, portanto, com as suas características adaptativas, sublinha o professor Candido: “é preci- so pensar no caipira como um homem que manteve a herança portu- guesa nas suas formas antigas. Mas é preciso também pensar na trans- formação que ela sofreu aqui, fazendo do velho homem rural brasileiro o que ele é, e não um português na América”.37

Já na primeira parte do oitocentismo, com a fundação da Acade- mia de Direito (1838), e conjuntamente com as transformações que se deram no país na virada do século (Lei Áurea, Proclamação da República), a capital paulista tornou-se um centro intelectual, literário e econômico. Isto determinou o marco divisório entre a tradição “atrasada” da cultura caipira, identificada com o interior do Estado, e a cultura “adiantada” da capital, ligada ao progresso, comércio, indús- tria e modernidade. Raymond Williams escreveu que “o campo pas- sou a ser associado a uma forma natural de vida – de saber, comuni- cações, luz... o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação”.38 O caipira paulista identificou-se com o agricultor itinerante, em esta- do de isolamento entre as comunidades do interior, por sua vez isoladas da capital.
***

Vale lembrar, ainda que de passagem, que o Romanceiro tradicio- nal vindo ao Brasil representa uma etapa evolutiva já bastante refina- da do antigo romance ibérico. Houve uma evolução semelhante à que explica o porquê da evolução da rima assonante ou parcial em rimas totais, nos romances modernos e, como veremos, nas formas popu-
37“Caipiradas”. In: CANDIDO, Antonio. Rec or tes, p. 249.
38O Campo e a Cidade: na História e na Literatura, p. 11.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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lares brasileiras e, acentuadamente, na Moda Caipira. A evocação de um romance popular, talvez tradicional, talvez uma variante moder- na, encontra-se explicitada na tópica exordial de verso triplo (12 linhas) da moda-de-violaCatimbau, de Carreirinho (Adauto Ezequiel, Bofete – SP, 1921-) e Teddy Vieira:
CATIMBAU
moda-de-viola
Carreirinho / Teddy Vieira
Tive leno num romance
De um casal de namorado
De Rosinha e Catimbau
Dois joves apaixonado.
Rosinha, família rica,

Catimbau era um coitado, Capataiz de uma fazenda, Mas trabaiador honrado... Adomava burro brabo,
No laço era respeitado...
Um caboclo destemido
Ai, por tudo era admirado, ai!
(Tião Carreiro e Pardinho, Modas-de-viola
Classe A - v.3, 1981.)

Há ocorrências bem marcantes de antigas motivações temáticas na Moda Caipira. Um peão roncando as vantagens de suas vitórias em rodeios diz que “já montei até no cão! / nunca precisei de freio, / pra montá em bichopagão” (Boi Veludo, 1959, de Lourival dos Santos e Jesus Belmiro); noutro romance, diz o eu-cantador que “quando eu era criancinha / tinha mar inclinação / eu arriscava minha vida / pra montá em quarquépagão” (Moda do Peão, de Cornélio Pires [Tietê-SP, 1884-1958] supostamente interpretada por Mariano e Caçula, no disco pioneiro nº 20007, de 1929, da Série Cornélio Pires), ambas referindo-se ao manga-larga mestiço adjetivado como “pagão”, em remembrança cruzada ao terrível mouro a campear em terras católicas de El Cid. Exem- plo notável, embora raro, da permanência de enredos literários do
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Romanceiro tradicional no mundo caipira é a moda-de-violaNova Lon-
drina, de Teddy Vieira e Serrinha (Teddy Vieira de Azevedo, Itapetininga-

SP - 1922-1965; Antenor Serra). Constituída à base de estrofes de “ver- so dobrado”39 isométrico e de a isorritmia das células ternárias de arte maior (decassílabos com acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas, tão comum no
martelo agalopado nordestino), anapéstica (estilo ligeiro e fluente de se-
qüências de duas sílabas breves e uma longa – tã-tã-tã–tã-tã-tã–tã-tã-
tã...), sendo essas estrofes intercaladas por uma quadra heterométrica,
Nova Londrina revela traços de permanência do imaginário carolíngioe

guerras entre cristãos e mouros, das gestas francesas e castelhanas, com a história relacionada ao imperador Carlos Magno e heróis a ele ligados como Oliveiros, Roldão, sobrinho de Carlos Magno, os Doze Pares de França..., incorporados ao mundo imaginário caipira:
NOVA LONDRINA
moda-de-viola
Teddy Vieira / Serrinha
Pra corrê o Norte do Paraná
Eu comprei uma mula argentina

Por ser besta boa pra marchá Puis o nome de Campolina. Vô cortá trinta légua de mata No dobrar daquelas colina
Quatro ferradura de prata
E uma fita amarrado na crina.
Me veio na lembrança os treis par de França,
Seis home valente, matô muita gente,
Eu abanco o Rordão, naquele sertão
De Nova Londrina.
(Vieira e Vieirinha,Garça Branca, 1966)
* * *
39 Cabe observar que é comum entre os caipiras designarv e r s o pelo que
corresponde a uma quadra. Neste sentido, “verso dobrado” significa duas
quadras e “verso e meio”, um sexteto.
A MODA É VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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É oportuno observar que procurarei reproduzir neste Ensaio o “linguajar estropiado” caipira, tal como é pronunciado pelas duplas, nas gravações em disco, de modos que a legibilidade se aproxime da elocução original. Procura-se com isto manter o metro, o ritmo e o encarrilhamento original das rimas. O leitor vai notar uma diferença às vezes grande de registro lingüístico entre os vários locutores. Exis- tem nas cantorias e tertúlias a fala de si mesmo em seus vários matizes, e afala do outro em sua própria fala. Daí as diferenças notáveis entre os registros de fala de Vieira e Vieirinha (Rubens Vieira Marques, 1926-; Rubião Vieira, 1928-1990, nascidos em Itajobi-SP), por exemplo, em relação a Tião Carreiro e Pardinho. Na cronologia desta última dupla vamos sentir uma paulatina assimilação do “falar correto do outro” em sua fala, à medida em que os artistas interagem nos vários lugares, dos cafundós rústicos do campo aos ambientes mais refinados das cidades. Há, por assim dizer, a projeção mediadora do discurso letra- do – em última análise escrito – sobre a natural oralidade corrente no bairro rural. A fim de demarcar os vários registros, os testemunhos e relatos de experiências de artistas caipiras, no decorrer deste Ensaio, serão transcritos, ipsis verbis, do gravador. Enfatizo que contra a trans- crição desse processo dialetal caipira já houve alguma manifestação em contrário e, observadas as diferenças regionais pelo interior de São Paulo, Sul de Minas Gerais e Mato Grosso, parte de Goiás, Norte do Paraná, além de algumas áreas rurais dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo (a zona caipira é uma espécie de expansão da antiga Capitania de São Vicente), este é um dos pontos marcantes de especificidade e conseqüente preconceito contra os habitantes das zonas rurais das citadas regiões. Perceptível e estigmatizada como “errada”, a fala caipira pouca importância dedica às regras sintáticas de concor- dância, talvez pela percepção da redundância da regra normativa e, em muitos casos, pela pouca diferença fonética entre singular e plural, sem nenhuma implicação que turve o sentido lógico e poético do vernáculo. A “correção”, ademais, soa como enunciado pedante, afe- tado, divorciado de seu contexto geopolítico. Amadeu Amaral co- menta que “foi o que criou aos paulistas, há já bastante tempo, a fama de corromperem o vernáculo com muitos e feios vícios de lingua- gem”. Relata esse estudioso do caipirismo que “quando se tratou, no Senado do Império, de criar os cursos jurídicos no Brasil, tendo-se proposto São Paulo para sede de um deles, houve quem alegasse
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contra isto o linguajar dos naturais, que inconvenientemente conta- minaria os futuros bacharéis, oriundos de diferentes circunscrições do país...”40
* * *

Retornando às considerações sobreNova Londrina, a respeito da modificação tão evidente (“treis par de França”), isto se explica pela própria sucessão da oralidade, na vagareza do tempo. Os números se perderam porque não foram registrados em livros; encontram-se pulverizados em informações e circunstâncias difusas na memória popular. No caso em tela, portanto, o episódio do imaginário carolíngio passou a ser objeto adquirido da literatura e, deste modo, vivo e histórico. Porém, como é comum, a memória coletiva, a im- provisação popular na corrente da oralidade, tende a remoçar os acon- tecimentos reais ou imaginários, transformando-os de verídicos his- tóricos em verídicos artísticos. Esclarece Arnold Hauser, abordando o mesmo assunto sob a óptica sincrônica da épica medieval, que “a última interpretação não é, necessariamente, a ‘mais arguta’; mas toda a tentativa séria para interpretar um trabalho sob o ponto de vista de um presente vivo aprofunda e alarga o seu significado. Todas as teo- rias que nos mostram a poesia épica de um ponto de vista novo e historicamente válido são úteis, porque nos interessa, mais do que a verdade histórica com ‘o que realmente aconteceu’, conseguir uma aproximação direta e nova do assunto”.41

O assunto de que estamos tratando é um enredo que repercute no tempo, e se enleia às situações hodiernas em Nova Londrina. Em colóquio com Rubens Vieira Marques (1926-), o Vieira, da dupla Vieira e Vieirinha, gravada em l6.set.1994, o artista explica que

As moda que nóis canta têm muito de romance, de ima- ginação, mas têm muito de verídico, porque o povo com- prova as história. Moda-de-viola é ansim: tem muito de verdade e tem muito de mentira. É que nem um filme de cinema. Tem gente muito antiga que ouviu falá e até co- nheceu os trêis par de França, que era um bando persegui- do pela capitura e que vivia na região de Maringá (que nem enxistia naquela época). O Rordão era um caboclo muito
40AMARAL, Amadeu.Dialeto Caipira, p. 41.
41HAUSER, Arnold.História Social da Literatura e da Arte - I, de p. 228.
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valente que ajudava os pobre e pertencia ao bando. Diz que ele nunca chegô a sê preso, porque era protegido pelo próprio delegado da capitura. Quando nóis foi pra São Paulo, eu com o Vieirinha, nóis cantavaNova Londrina. Cantava ela muito comprida, tinha muitos verso [estro- fes]. Então o Serrinha e o Teddy Vieira pegô a letra, que achava muito bonita, e reduziu ela pa que cabesse dentro do disco. Então ficô aqueles verso que cê conhece. O que eu vejo falá do Rordão, no Paraná, é que foi um home bão, por um lado, mas perigoso, muito matadô e muito brabo. Os trêis par de França era também muito brabo. Rordão, eu num sei de que idade ele é, mas deve sê muito véio, né? Só os antigo conheceu ele. E enxistiu, sim se- nhor. Enxistiu o Rordão e os par de França também, lá no Norte do Paraná. É a mesma coisa que Lampião, que nóis conhece do nosso tempo. O Rordão e os par de França é que nem o Lampião e os cangacero...

Em Nova Londrina enxistia muito grilo de terra, grilage da terra que era muito boa, terra roxa... Então o personage da moda “abancô o Rordão”, pra acabá com a grilage de terra, e protegê coitadinho que já vivia na terra perseguido pelos jagunço dos fazendero. O Rordão era do lado bão, como eu falei. O Teddy era tenente do Exército, e conhecia essas história em livro. Decerto enxistia essas história ar- quivada lá no Exército. Então porque era verdade no Paraná e porque era verdade nos livro, daí nasceu a moda
Nova Londrina, que nóis gravemo e foi sucesso.42

São palavras verdadeiras? Respondo que sim, num dos sentidos difusos e plausíveis de verdade, relativizados pelo tempo, como for- tuna admitida pelo imaginário e consenso coletivo. Verdade jurada, pois aversão torna-seacontecimento, valendo mesmo mais que este. Extingue-se, por assim dizer, a verdade pontual relatada porum indi- víduo, ao enlear-se e energizar-se de sentidos, na imaginação criativa comunal, sempre posseira de um contexto histórico vivo. De qual- quer modo, havendo como não há dúvida de que haja, um mecanis-
42 Coletei seis horas de gravações com Vieira, entre os anos de 1994 e 1995.

Esse artista, de vasto preparo e com uma carreira de mais de 50 anos, configu- ra-se como nosso principal informante de situações reais e imaginárias do mundo caipira.
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mo de indefinição no processo de referencialidade, a alusão aos “treis par de França” suscita muito mais um apelo à imaginação que propri- amente a lembrança de uma situação palpável da experiência. Mais ou menos nessa linha, Northrop Frye lança mão da noção de mundo
hipotético. No correr desse pensamento, Paul Ricoer escreve que “a
hipótese poética é a proposição de um mundo sob o modo imaginati-

vo, fictício. Assim, a suspensão da referência real é a condição de aces- so à referência sobre o modo virtual. Mas o que é a vida virtual? Poderá existir uma vida virtual sem um mundo virtual no qual seria possível habitar? Não será função da poesia suscitar um outro mun- do – um outro que corresponde a possibilidades outras de existir, a possibilidades que sejam os nossos mais próprios possíveis?”43

Na poesia, a palavra se propaga entre as palavras, e constrói um mundo de palavras, diferente do mundo das coisas. O mundo de palavras existe para significar. E significa, se for realmente um mun- do, ou seja, a poesia. A proposição dos autores Teddy Vieira e Serrinha tem muito mais de afetivamente evocativo que de referencial e suscita a especulação e divagação sonhadora. Realiza-se uma definição aceita, mas conceitualmente indefinida, um jogo no qual concorrem muito mais as matérias significantes dos signos, deixando aos receptores uma brecha para o vôo imaginativo tão característico da obra aberta de que trata Umberto Eco.

No primitivismo da Moda Caipira há uma polivalência funcional que, ao mesmo tempo, se aproxima do desi gnat um – a coisa ou situa- ção referidas –, dá-lhes uma amplitude de sentidos, uma transcendência que ultrapassa a realidade tangível, situada e datada. Os horizontes de sentido da obra, embora correlatos, nunca são idênticos à realidade bruta. Há um deslocamento do prosaico para o poético; passa-se do denotativo paraco-notati vo. Deste modo, trata-se de uma poesia duplamente positiva já que, sem infringir o código corrente, ela o repõe numa dimensão superior. Esclarece o erudito italiano que “quem comunicar conforme tal intenção sabe também que o halo conotativo de um ouvinte não será igual ao de outros eventualmente presentes; mas, tendo-os escolhido em idênticas con- dições psicológicas e culturais, pretende justamente organizar uma comunicação de efeito indefinido – delimitado porém por aquilo que
43RICOER, Paul. A Metáfora Viva, p. 341-2.
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podemos chamar decampo de sugestividade.44Neste sentido, o auditó- rio seria o interlocutor abstrato regenerado e latente na consciência do autor, no processo da concepção do texto. Este é abstrato porque se realiza no horizonte da cultura. Possui um nível de significação que está para além da superfície aparente dos significados. Essa proposta com função sugestiva abre campo, por assim dizer, ao fator significante da poesia, carreando ingredientes de transição da unicidade referencial para a poeticidade da mensagem. Trata-se de um procedimento mui- to sutil e ilustrativo de como funciona o modo conotativo no linguajar da Moda Caipira de raízes, modo esse que nunca dispensa, a partir do princípio literarizante do texto, a participação co-produtiva desse ou- vinte abstrato. Isto se dá pela passagem do unívoco para o plural, do individual para o plenário, do datado e circunstancial para o poético. A respeito de ocorrência análoga, ensina Menéndez Pidal: “a poetização individual, sempre agitada, sempre revolta entre a multiplicidade de acidentes particulares e efêmeros próprios do momento atual, se de- canta límpida e pura sob a ação sedimentadora da tradição. Qualquer desejo de novidade se extingue. O poeta inicial e os refundidores sucessivos se desvanecem; todo personalismo autoral desaparece submerso na coletividade”.45 O que vale é a imaginação que se agrega ao saber comum, correndo de boca em boca, afortunado pela lapidação do tempo. Esse, como se pode constatar, é um dos pontos essenciais do rito de transição darealidade histórica, quer dizer, daquilo que é assim mesmo, em r ealidade ar tística. A imaginação interpola-se à reali- dade. Jerusa Pires Ferreira, ao enfocar esses “lapsos” referencializantes, como os que ocorrem em Nova Londrina, tão naturais e freqüentes, e que deslizam para o mundo literário das palavras, escreve que “se a poesia popular é memória e recriação, lembrança intensa e permanen- te de matrizes arcaicas que se rearranjam, agrupam e recriam em pro- cessos contínuos, cresce de importância a avaliação do fenômeno: a falha de memória”.46 No entanto ela é aceita, prazerosa e funcional- mente, na escritura popular.
* * *

44ECO, Umberto.Ob ra Ab er ta, p. 78.
45Romancero Hispánico (Hispano-Portugués, Americano y Sefardí) - I, p. 61.
46FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memória (Conto e Poesia Popular), p.38.
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Em páginas precedentes deixei consignada indagação sobre como obras literárias famosas, por terem caído no gosto popular, se transformaram em fontes temáticas da Literatura Popular. Tais narrativas, lidas geralmente em voz alta, convertem-se em fábulas a serem contadas oralmente, como se fossem “causos” vívidos ou provindos de motivações acontecidas. Ancoram-se em fatos e situ- ações acontecidos ou se referem a lugares existentes para proporcio- nar efeitos de realidade. Por isto, adaptam-se ou se ajuntam aos con- teúdos imaginários e tangíveis, e se sedimentam no verídico. Reali- zam o percurso de passagem do signo escrito em signo de dicção oral, muito freqüente, e que se equaciona em máximas do tipo “conta-me um conto”. De fato, até pelas condições de dificuldades de acesso ao livro, pela pouca familiaridade com as letras, o prazer do texto tipografado reivindica a volta ao estágio de oralidade, in- terpondo entre o signo escrito e o auditório a decisiva participação recreativa e re-criativa do intérprete, considerado num primeiro es- tágio o escritor de modas (no pertencimento caipira, a grande mai- oria das modas vem assinada por uma dupla de autores); num segundo, o porta-voz do poeta popular, que canta à viva voz, com suas teatralizações de miragens, relações interativas e co-produtivas com a assistência. Esse emissor de mensagens será comumente referido por o violeiro-cantador, o modista ouo cantador: aquele que anda com intenção sonhosa na cabeça. É ele que, deixando de lado o nome de batismo e sua história de vida privada, assume a máscara e encarna de corpo e alma a criatura projetada de sua existência: o ídolo, no resplendor.
***

É necessário entender que o processo de concepção literária asso- cia-se à criação de imagens visuais, além de provocar correlações com experiências concretas. Os jesuítas tinham plena consciência desse fato, ao se relacionar com populações iletradas. Trata-se de experiência ad- quirida que remonta há séculos: os afrescos das igrejas medievais, as ilustrações dentro dos textos, a oralidade dos sermões eram agentes de transmissão entre a igreja e seus fiéis. Além dos aspectos lúdicos e artísticos dos atos de recitar e cantar, não é difícil entender por que os jesuítas usaram as formas do Romanceiro tradicional como estratégia de evangelização.
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Difundido no devocionário dos jesuítas (que chegaram ao Bra- sil em 1549), o Romanceiro tradicional está na origem dos princi- pais afluentes de modas caipiras. AMo d a - d e - v i o l a que, por sua fabulação novelesca e legendária, autênticas xácaras, mais homologia apresenta com o Romanceiro. É cantada à capela e, ao mesmo tempo, com duas violas, uma ponteada e outra batida. Durante as estrofes, e marcando o ritmo, a melodia é perseguida pela ornamentação ponteada das cordas mais finas e agudas, difi- cilmente audíveis nas gravações antigas. O acompanhamento ins- trumental se evidencia no intervalo entre as estrofes, funcionando como elemento de suspense e anti-clímax, despertando o interes- sa pelo porvir lírico-narrativo da estrofe seguinte. Oc u r ur u e o
cateretê – os mais primitivos dos sons caipiras – são amálgamas,

mediações e adaptações de danças e cantares ameríndios. Embora os europeus pensassem que europeizavam os indígenas e africa- nos de pele negra, aqueles é que se aindiavam, se africanizavam... se brasilizavam. Nesse sentido, o cururu e o cateretê tomaram a feição dos solenes autos religiosos e rituais de fé europeus, com acompanhamentos da viola, cantos e danças autóctones e primitivistas. Couto de Magalhães, em 1876, registra que “o paulista, o mineiro, o rio-grandense de hoje cantam nas toadas em que cantavam os selvagens de há quinhentos anos e em que ainda hoje cantam os que vagam pelas campinas do interior”.47 De fato, esses cantares persistem até hoje em algumas regiões, até como forma de resistência e fortalecimento da vida caipira. Nas zonas rurais, como as da região piracicabana e do pantanal mato- grossense, o Cururu é cantado em carreira, ou seja, com apenas uma rima, puxada por um cururueiro ou cantorião repentista, que enxerga e interage com o tocador de viola. Nhô Serra e Zico Moreira, de Piracicaba, são exemplos desses cururueiros persistentes. Além dos tradicionais temas religiosos, há os urbanos e os circunstanci- ais ouencontrados, abstraídos na correlação momentânea e interativa da cantoria. A platéia aplaude a cada estrofe reconhecendo-se refle- tida nas estrofes. ORe c o r t e ou Recortado Mineiro, de ascendência ameríndia e traços de música africana, é base fundamental doCatira (dec a t i r e t ê < cateretê), com seu repicado de violas entrecortado
47MAGALHÃES, Couto de. O Selvagem, p. 90.
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por palmas, sapateados e a coreografia dos intérpretes. Por ele ser seccionado pela dança, as estrofes do recortado quase sempre têm motivações próprias, guiadas pelo fio tênue de um mote ou o motivo principal que unifica o todo. ATo a d a, mais melodiosa e lânguida, caracteriza-se como espécie catalisadora do caudal de can- tares tradicionais brasileiros. Com sua riqueza polimorfa e assimetria versal e estrófica, num estilo retórico-expositivo, são
toadas algumas das mais queridas modas caipiras gravadas em dis-

co nas várias épocas. As mais famosas toadas caipiras se dividem em dois tempos lírico-narrativos: uma introdução declamada e um desenvolvimento cantado. Esses tempos podem ter metrificações e estrofações próprias. O Pagode de Viola, afluente recente e ladino, é enxerto repicado e trepidante do Recortado Mineiro com o Catira, admirável pelos ornamentos veementes e sensacionais da viola, tendo os toques de violão no contratempo. Realizado quase sempre com a exuberância das antigas Cantigas de
Meestria48 , possui uma estrutura poemática fincada no preceito

artístico da associação de idéias, em que “uma coisa puxa a outra”, das construções anafóricas (repetições das mesmas estruturas), da polifonia das correlações internas no interior dos versos e estro- fes. Sem enredo narrativo e puxadas pelo fio tênue de um mote que lhe propicia o contexto (como no vilancete medieval), as es- trofes do Pagode de Viola têm motivações que sobrevivem no interior delas mesmas, e se articulam entre si formando uma se- qüência elíptica, fragmentária, prevalecendo a motivação temática predominante – o mote.

Exceto alguns gêneros menos ocorrentes e sobretudo o Pago- de de Viola, a Moda Caipira, de acordo com o modelo tradicional vigente nas camadas pobres dos grupos rurais, ou deles provin- dos, baseia-se num encadeamento lírico-narrativo que lhe confere uma espécie de “legalidade interna”: o tema se desenvolve de acor- do com o padrão de enredo na linha do princípio, desenvolvi- mento e desfecho. É primitivista, crua e direta e, no caudal do
48 AsCantigas Medievais de Meestria são composições poemáticas de sete versos

em cada estrofe. Usamos o designativo na acepção também usual de “compo- sição de mestre”, isto é, muito requintadas do ponto de vista técnico e, por isto, muito difíceis em suas elaborações.