Origem da plavra Caipira

Baseado na Grande Reportagem “Os Rumos da Música Caipira no Vale do Paraíba”, de Anderson Borba Ciola e Fábio Cecílio Alba, a origem da palavra caipira ainda é motivo de controvérsias. Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luiz Câmara Cascudo, a palavra significa “homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. Habitante do interior, tímido e desajeitado...”. Robert W. Shirley, em seu livro “O fim de uma tradição”, critica a posição de Câmara Cascudo, dizendo que: “Esta definição em si mesma, revela a extensão da grande lacuna social entre os escritores urbanos e os camponeses, pois, de fato, o caipira tem uma cultura distintiva e elaborada, rica em seus próprios valores, organizações e tradições”. Já no Dicionário Aurélio é encontrada a seguinte definição: “Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos”. Cornélio Pires, jornalista e violeiro, em seu livro “Conversas ao pé do fogo” define a palavra caipira da seguinte forma: “Por mais que rebusque o étimo de caipira, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi-guarani capiâbiguâara. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto, neste caso temos a raiz ‘caí’, que quer dizer gesto de macaco ocultando o rosto. Capipiara, que quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do mato, faz lembrar o capiau mineiro. Caapiára quer dizer lavrador e o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último o mais aceitável, pois caipira quer dizer roceiro, isto é, lavrador...”.

15.3.11

Darci Ribeiro/ Bruno F M


http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR&langpair=en|pt&u=http://www.greentranslations.com/article/portugese-dialects

Português Dialetos

Within Portugal, a number of regional accents can be distinguished, though none wanders so far from the mainstream standard as to be a separate dialect. Em Portugal, um número de sotaques regionais podem ser distinguidos, embora nenhum tão vagueia longe do mainstream como padrão a ser um dialeto separado. The same is also true in Brazil, though accent diversity between the extreme south and the far north often results in difficulties of mutual understanding. O mesmo é verdade também no Brasil, embora a diversidade sotaque entre o extremo sul e os resultados extremo norte, muitas vezes em dificuldades de compreensão mútua.

The difference between Continental Portuguese and Brazilian Portuguese, however, is stark. A diferença entre a Continental Português e Português do Brasil, no entanto, é gritante. They are mutually intelligible only with some difficulty, and are distinguished by numerous differences in pronunciation, grammar and word choices. Eles são mutuamente inteligíveis somente com alguma dificuldade, e se distinguem por inúmeras diferenças na gramática, pronúncia e escolhas de palavras. The difference is considerably more pronounced than, say, British English and that spoken in Canada, the United States or Australia. A diferença é muito mais pronunciada do que, digamos, Inglês britânico e que falado no Canadá, nos Estados Unidos ou Austrália.

African and Asian versions of Portuguese seem closer to the Continental manner of speaking than to Brazilian Portuguese, and they can be divided further into many regional sub-dialects, as lack of mobility and mass media communications tend to make regionalisms more pronounced. versões Africano e da Ásia do Português parece mais perto da forma continental de falar do que para o Português Brasileiro, e eles podem ser divididos ainda em muitos regional sub-dialetos, como a falta de mobilidade dos meios de comunicação de massa e tendem a fazer regionalismos mais pronunciada.

Portuguese Accents Português Destaques

Though a relatively small country, Portugal has traditionally divided itself among several different regions according to the accent of the people. Apesar de ser um país relativamente pequeno, Portugal tem, tradicionalmente se dividiu entre diversas regiões de acordo com o sotaque das pessoas. The main urban dialect is Estremenho , which comprehends Lisbon and Coimbra. O dialeto urbano principal é Estremenho, que compreende de Lisboa e Coimbra. In the very far north is Alto.Minhoto and just below it Nortenho (Braga and Porto) and Transmontano (upper Douro) to the east, towards Spain. No extremo norte é muito Alto.Minhoto e logo abaixo Nortenho (Braga e Porto) e Transmontano (Alto Douro) para o leste, em direcção a Espanha. In the central regions are Beirão and, south of it, . Baixo-Beirão . Nas regiões centrais são Beirão e, ao sul dela,. Baixo-Beirão. These are eastern-central areas, the western part being part of the Lisbon-Coimbra area. Estas são áreas leste-central, na parte oeste de ser da área de Lisboa-Coimbra. Then, south of them is Alto-Alentejano , then Alentejano farther south, and at the bottom, Algarvio. Então, ao sul deles é Alto-Alentejano, então Alentejano mais ao sul, e no fundo, Algarvio. Madeirense (from Madeira Island) and Açoriano (from the Azores) are distinct accents as well. Madeirense (da Ilha da Madeira) e Açoriano (nos Açores) são sotaques diferentes também.

Brazilian Accents Destaques do Brasil

Within Brazil a number of accent areas can be identified, some of which border on being a separate dialect. No Brasil, um número de áreas sotaque podem ser identificados, alguns dos quais fronteira a ser um dialeto separado. But before touching on regional differences, one special case must be considered. Mas antes de tocar nas diferenças regionais, um caso especial deve ser considerada. That is the city of São Paulo. Essa é a cidade de São Paulo. In a metropolitan area now home to well over 20 million people, almost every possible accent of Portuguese can be heard. Em uma área metropolitana hoje abriga mais de 20 milhões de pessoas, quase todos os possíveis acento do Português pode ser ouvido. São Paulo and its surrounding agricultural area (coffee, sugar and oranges) has become home for the greatest variety of peoples and races, each speaking Brazilian Portuguese in his or her own distinct way. São Paulo e seus arredores agrícolas (açúcar, café e laranja) tornou-se lar para a maior variedade de povos e raças, cada um falando Português do Brasil em sua própria maneira distinta. Many immigrants from Italy and Japan (at different times) have influenced the rhythm and pronunciation of local speech. Muitos imigrantes da Itália e do Japão (em momentos diferentes) têm influenciado o ritmo da fala e pronúncia local. São Paulo also received many other refugees from Europe (particularly Jews escaping persecution in Europe at the time of Hitler and Egypt when Suez was returned by the British) Armenians and Lebanese Christians also fled to Brazil in large numbers to escape the ethnic cleansing of the Ottoman Turks. São Paulo também receberam muitos outros refugiados da Europa (especialmente judeus fugindo da perseguição na Europa na época de Hitler e do Egito, quando Suez foi devolvido pelos ingleses), armênios e cristãos libaneses também fugiu para o Brasil em grandes números para escapar da limpeza étnica dos otomanos Turcos. São Paulo has also been the destination for many economic refugees from Brazil's impoverished northeast, at the rate of nearly 1,000 newcomers every day. São Paulo também foi o destino de muitos refugiados econômicos do nordeste pobre do Brasil, à taxa de cerca de 1.000 novos todos os dias.

In the countryside, a "country" accent called " caipira " is very pronounced. No campo, um "país" chamado sotaque caipira é muito pronunciado. And because it tends to muddle "r" and "l", can be hard for the city folk to comprehend. E porque ele tende a atrapalhar "r" e "l", pode ser difícil para o povo da cidade para compreender. The residents of Rio de Janeiro to the north (called " cariocas " or " fluminenses ") likewise have a strongly identifiable regional accent, characterized by prolonged diphthongs and more nasalization than in the south. Os moradores do Rio de Janeiro para o norte (chamados de "cariocas" ou "fluminense") também tem um forte sotaque identificável regional, caracterizada por ditongos prolongada e mais nasalização do que no sul. Yet further to the north, the State of Bahia demonstrates considerable influence from African tongues, as most of the slave trade passed through its main port city, Salvador. Ainda mais ao norte, o Estado da Bahia demonstra uma influência considerável de línguas Africano, como a maioria do comércio de escravos passaram através do seu porto principal da cidade, Salvador. Going south from São Paulo one encounters areas strongly influenced by German and Italian migrations from the end of the 19th century, with distinct speech patterns typical of those languages and cultures. Indo para o sul de São Paulo uma das áreas encontra fortemente influenciada pelas migrações alemã e italiana do final do século 19, com diferentes padrões de fala típico dessas línguas e culturas. In the far south, the "Gaucho" accent is notable by its lilt and relatively clipped pronunciation (somewhat more like Spanish than Portuguese in the prolongation of vowels) and by its (correct) use of the "tu" form, and by its substantial local vocabulary, unknown to most outsiders. No extremo sul, o "Gaúcho" sotaque é notável pela sua cadência e pronúncia relativamente cortado (um pouco mais como espanhol do Português no prolongamento das vogais) e pelo seu uso (correto) da forma "tu", e por sua importante vocabulário local, desconhecido para a maioria dos forasteiros.

Towards the interior, the accent in traditional areas of Minas Gerais is easily distinguished, as well as the accents of the plains people of Mato Grosso and Goiás. Para o interior, o acento em áreas tradicionais de Minas Gerais é facilmente distinguida, assim como os sotaques das pessoas planícies do Mato Grosso e Goias. The northeastern accents of states like Pernambuco is also immediately recognizable, as is yet another variation in the far north, by Fortaleza. Os sotaques do nordeste de estados como Pernambuco também é imediatamente reconhecível, como é ainda outra variação, no extremo norte, pelo Fortaleza.

In spite of the wide dissemination of television, with its homogenizing effect on speech, the regional accents in Brazil continue to thrive. Apesar da ampla difusão da televisão, com seu efeito homogeneizador sobre a fala, os sotaques regionais no Brasil continuam a prosperar.

The most prominent differences in pronunciation between Continental and Brazilian Portuguese are in the final "e" and "a" sounds. As diferenças mais proeminentes de pronúncia entre Continental e Português do Brasil estão no "e" final e "a" sons. In Portugal, the final "e" is almost a schwa, and in Brazil it is almost an /i/. Em Portugal, o "e" final é quase um schwa, e no Brasil é quase um i /. The word "que," for example, would be pronounced [kǝ] or [kɐ] in Portugal, so it almost rhymes with "the" as "the tongue". A palavra "Que", por exemplo, seria pronunciado [kǝ] ou [kɐ] em Portugal, de modo que quase rima com "o" como "a língua". In Brazil, it would be [ki] and sound like the English word "key" without any extra vowel sounds. No Brasil, seria [ki] e parece o Inglês palavra "chave" sem sons vocálicos extra. Brazilian Portuguese palatizes /t/ and /d/ before the /i/ sound (the letters "e" and "i"), making them "chi" and "dgi." Brasil palatizes Português / t / e / d / antes de eu o som / / (as letras "e" e "i"), tornando-os "chi" e "DGI". Thus, the word for "people," which is " gente ," is pronounced in Brazil with a final sound of "chi" and in Portugal with a final sound more like "tuh." Assim, a palavra "povo", que é "gente", é pronunciado no Brasil com um som final de "chi" e em Portugal, com um som final mais como "tuh."

Pronunciation differences are summarized below in terms of the IPA. diferenças de pronúncia são resumidos a seguir em termos do IPA. Additional differences include a considerable amount of vocabulary, the speed of elocution and rhythm. diferenças incluem uma quantidade considerável de vocabulário, a velocidade de elocução e ritmo.

Neighboring and Derived Languages Vizinhos e línguas derivadas

Galician is the nearest cousin to Portuguese, which is spoken in the autonomous region of Galicia in northwestern Spain. Galego é o mais próximo primo para o Português, que é falado na região autónoma da Galiza, no noroeste da Espanha. Once the same idiom, they drifter apart after the early 16 th century separation of the Kingdom of Portugal from the Kingdom of Spain. Uma vez que o mesmo idioma, eles andarilho distante após o início do século 16 º de separação do Reino de Portugal, do Reino da Espanha. It is mutually intelligible to a high degree with the northern accents of Portuguese. É mutuamente inteligível com um alto grau com o sotaque do norte de Português. Central and Southern Portuguese have more difficulty with it. Central e do Sul têm mais dificuldade em Português com ela. Another, somewhat obscure language is "Fala" (meaning "speak"), which is restricted to a few older citizens in the towns of Valverdi and Freznu in Extremadura, the westernmost Spanish province that borders Portugal in the southeast. Outra língua, é um pouco obscura "Fala" (que significa "falar"), que é restrita a alguns cidadãos mais velhos nas cidades de Valverdi Freznu e na Extremadura, a mais ocidental província espanhola que faz fronteira com Portugal no sudeste. A descendant of Galhego-Português, it also is mutually intelligible with Portuguese as spoken in the central and southern regions of the country. Um descendente de Galhego-Português, também é mutuamente inteligível com o Português como falado nas regiões central e sul do país.

Portuguese, by being a European language of conquest in Africa, Asia and the Americas, has given rise to a number of local mixtures of indigenous language with Portuguese. Português, por ser uma língua europeia de conquista na África, Ásia e Américas, tem dado origem a uma série de misturas local da língua indígena com o Português. These are known as Portuguese Pidgins or more broadly, Portuguese Creoles. Estes são conhecidos como Português pidgins ou, mais amplamente, Português crioulos. (The word "Creole" is itself a Creole derivation from the Portuguese word " crioulo ," a person "raised" in a colony, often with a European parent. It has come to mean generally any racial or ethnic mixture, particularly when describing music, food or other popular culture. In Brazil, it has come to mean simply of African origin.) These languages are not Portuguese, but have various degrees of Portuguese influence. (A palavra "crioulo" é em si uma derivação Crioulo Português da palavra "crioulo", uma pessoa "levantado" em uma colônia, muitas vezes com um dos pais europeu. Chegou a média geral, racial ou étnica, qualquer mistura, especialmente quando descrevem música , comida ou outra cultura popular. No Brasil, passou a significar simplesmente de origem Africano.) Estas línguas não são o Português, mas de vários graus de influência Português. Caboverdiano, spoken in Cabo Verde, is a Creole that is highly intelligible to Portuguese speakers. Caboverdiano, falado em Cabo Verde, é um crioulo que é altamente inteligível para falantes do Português. In nearby Angola, the language is really Portuguese, not a Creole, but it has many regionalisms and pronunciation shifts, so that a Portuguese-speaker from Brazil or Portugal may have trouble understanding it well. Em Angola, por perto, o idioma Português não é realmente, um crioulo, mas tem muitos regionalismos e as mudanças de pronúncia, de modo que um alto-falante Português do Brasil ou de Portugal poderão ter dificuldade para entender bem.

Papiamento, spoken in the Netherlands Antilles and Aruba, is less so. Papiamento, falado nas Antilhas Holandesas e Aruba, é menos. It is a blend of Portuguese with elements of Dutch, English and Spanish. É uma mistura de Português com elementos do Holandês, Inglês e Espanhol.






http://www.espacoacademico.com.br/073/73praxedes.htm


por WALTER PRAXEDES

Docente na Universidade Estadual de Maringá e Faculdades Nobel; Doutor em Educação pela USP e co-autor de O Mercosul e a sociedade global (São Paulo, Ática, 1998) e Dom Hélder Câmara: Entre o poder e a profecia, publicada no Brasil pela Editora Ática (1997) e na Itália pela Editrice Queriniana (1999)

O dialeto caipira:

expressão não regulamentada e resistência

para Eva Bueno

As inúmeras formas de preconceito e discriminação existentes em relação ao dialeto caipira no Brasil são uma expressão viva da cumplicidade mantida com as línguas e culturas dominantes. Quando utilizamos como critérios de correção e elegância apenas as formas linguísticas orais e escritas de origem européia e faladas pelos estratos dominantes da sociedade brasileira, estamos sendo cúmplices com as instituições dominantes e legitimando a sua dominação.

Este artigo foi escrito com a intenção de contribuir para a “[...] criação de um contexto favorável aos marginalizados e oprimidos, para a recuperação da sua história, da sua voz, e para a abertura das discussões acadêmicas para todos” (Bonnici, 2000, p. 10).

1. Variações da linguagem oral: sob os efeitos da dominação colonial

Em um país em que convivem incontáveis coletividades humanas com as mais diferentes origens geográficas, nacionais, étnicas, culturais e linguísticas, ainda não discutimos suficientemente como apenas a língua portuguesa se consolidou enquanto a única legítima e oficial, marginalizando todas as demais, principalmente as línguas de origem indígena e africana. Um outro agravante: de acordo com Eduardo Guimarães (2004), que pesquisou a diversidade linguística do Brasil, através do Instituto de Estudos Linguísticos da Universidade de Campinas, podem ser identificados pelo menos sete dialetos principais falados pelos brasileiros nas várias regiões do país – amazônico, nordestino, baiano, cuiabano, mineiro, sulista, fluminense, com cerca de 20 variações, e em cada uma das variações, outras tantas formas incontáveis. O problema é que “os dialetos do Centro-sul são privilegiados politicamente, dando até status a quem os fala. Enquanto isso, os dialetos do Norte e do Nordeste, por exemplo, são depreciados” (Guimarães, 2004).

Na história do Brasil, o idioma português foi imposto como língua oficial, com a proibição e estigmatização das línguas discordantes do código padrão decretado pelo Marquês de Pombal. Para Luiz Carlos Villalta,

no reinado de D. José I, de quem foi ministro o poderoso Sebastião José de Carvalho e Mello, conhecido pelo título de marquês de Pombal (1750 a 1777), implantou-se uma política de imposição da língua portuguesa... Em 1770, Pombal ordenou aos mestres de língua latina que, ao receberem seus alunos, os instruíssem previamente, por seis meses, na língua portuguesa, usando a Gramatica portugueza, composta por Antônio José dos Reis Lobato” (Villalta, 2004, p. 61).

Um efeito direto do poder do estado metropolitano sobre as populações colonizadas é o saldo negativo da redução das cerca de 1200 línguas que eram faladas antes da chegada dos portugueses ao país que veio a se chamar Brasil, para as cerca de 200 que atualmente ainda sobrevivem no país, segundo Eduardo Guimarães, das quais 150 são indígenas. (Guimarães, 2004)

Como afirma a professora Ana Maria Stahl Zilles,

Esta questão, que poderia, à primeira vista, parecer desgastada, secundária ou mesmo circunscrita ao domínio das diferenças entre a fala e a escrita, é, na verdade uma ótima representação da história da língua portuguesa no Brasil: uma história de conflitos, muitas vezes de batalhas sangrentas, de imposições legais (não esqueçamos que nossa ortografia é matéria de lei), de preconceitos, de exclusões e de silenciamentos. Longe de ser uma história gloriosa e pacífica, portanto, como se poderia crer pela contumaz invisibilidade de nossas questões linguísticas.” (Zilles, 2005, p. 72).

2. Discriminação contra o dialeto caipira

No Brasil, desde o final do período colonial até o presente, o acesso privilegiado e a assimilação da língua dominante através do sistema escolar de ensino por parte das populações urbanas, historicamente se transformou em um mecanismo simbólico de distinção utilizado por aqueles que tiveram acesso à educação escolar, para se diferenciarem e distanciarem daqueles aos quais o mesmo acesso foi negado. Garantiu-se, assim, um melhor posicionamento dos primeiros na competição pelos melhores postos disponíveis no mercado de trabalho urbano e até rural, reservando para os falantes das formas de sobrevivência do dialeto caipira as ocupações de menor prestígio e remuneração, como as de agricultores, ajudantes, serventes, faxineiros, pedreiros, carregadores, ensacadores, domésticos, vigilantes, garis etc.

O professor José de Sousa Martins interpreta histórica e socialmente como o dialeto caipira resultou da hibridação da língua metropolitana com os falares indígenas. Para Martins,

O considerado “falar errado” nesse caso de fato não é “errado”. Trata-se de um dialeto. No caso do falar caipira, trata-se do dialeto caipira, uma variação dialetal da língua portuguesa fortemente influenciada pelo nheengatu ou língua geral”. O dialeto caipira decorreu, no meu modo de ver, da predominância do português falado sobre o português escrito, num universo de fala em que a população também falava nheengatu cotidianamente, mais do que o português. Minha impressão é a de que o dialeto caipira resulta das dificuldades de nheengatu-falantes para falar o português. É nesse sentido que afirmo que o dialeto caipira é uma derivação ou um desdobramento do nheengatu. Ou seja, estamos falando de populações bilingües. É claro que o dialeto caipira, como qualquer língua, também é dinâmico e evolui. Nota-se isso na facilidade de incorporação de palavras novas da língua portuguesa, neologismos, mas também estrangeirismos, devidamente adaptados à pronúncia dialetal [...]

As dificuldades de pronúncia de certos sons da língua portuguesa pelos índios dos séculos XVI a XVIII e também pelos mestiços, seus descendentes, os chamados caipiras, marcaram fundo as sonoridades do dialeto caipira [...]

Na verdade, o dialeto caipira, resíduo de uma proibição do rei de Portugal, se refugiou no interior do Brasil, onde era menor o alcance da repressão lingüística determinada pelo monarca no século XVIII.” (Martins, 2007)

O dialeto caipira sobrevivente entre os moradores da zona rural de algumas regiões do Brasil e entre os seus descendentes urbanizados, é considerado, então, uma língua de resistência das populações mestiças contra a imposição de uma língua oficial por parte da Coroa portuguesa, que impunha a sua língua “para legitimar a posse da terra e coibir o uso do nheengatu, temido como forma de os missionários controlarem os índios. Esta política de imposição da língua portuguesa tinha um sentido claro de promover a dominação dos povos e a obediência ao monarca.” (Villalta, 2004, p. 61)

As línguas são melhor estudadas se forem relacionadas com as formas de vida, trabalho e relações sociais dos seus falantes. Originalmente, no passado, como a citação do texto do professor Martins indica, as formas de vida e de trabalho e as relações sociais entre os moradores das zonas rurais construíram o dialeto caipira como o seu veículo de expressão e comunicação de significado. O dialeto caipira expressa uma forma de sociabilidade que tem na linguagem oral e na informalidade o meio para a conciliação de diferenças, resolução dos conflitos do cotidiano e a manutenção dos vínculos comunitários, necessários para a reprodução da vida material e espiritual do grupo em um meio rural marginalizado, como pode ser ilustrado pelos mutirões para a colheita, as reuniões para oração do terço ou para as festas e também pelo empenho na preservação dos laços familiares e no respeito aos idosos da comunidade. Não é possível, então, estabelecermos uma fronteira que separe a fala do idioma da vida econômica e da relação do grupo falante com a natureza.

Assim, a casa rústica, o quintal e a periferia próxima – o bairro, a vizinhança, acabam não sendo apenas os lugares do trabalho familiar, mas igualmente os espaços de quase toda a vida social e simbólica do caipira paulista. Ali as pessoas convivem entre parentes, “cumpadres” e vizinhos. Ali “festam” nos batizados, casamentos e mutirões. Ali praticam em família ou “no bairro” quase toda a vida religiosa: a pequena reza do terço que reúne à volta de um oratório caseiro as pessoas da família, os parentes e vizinho de residência próxima; as festas familiares de devoção coletiva, que obrigam à reunião de grupos maiores para a “devoção” ou “cumprimento de um voto válido”, com comida, reza, canto e dança, de que os festejos roceiros dos santos juninos ou de São Gonçalo são bons exemplos” (Brandão, 1983, p. 77).

A linguagem caipira é expressão também das formas de espiritualidade, fortemente marcadas pelo catolicismo dos colonizadores, mas também hibridizada com as formas de religiosidade indígena e africana. Como nos ensina Alfredo Bosi, “da maior parte das expressões da cultura não letrada se poderá dizer que são um complexo de formas significantes cujo sentido comum é o culto, a devoção. São instituições regradas de tal modo que a comunidade possa atualizar em si o sentimento da própria existência e da própria identidade” (Bosi, 1996, p. 47).

Através da língua falada as populações mantidas à margem da escrita e do sistema escolar estabeleceram e ainda estabelecem a sua vivência cotidiana conflituosa ou baseada nos vínculos afetivos, no lúdico, na confiança, no compadrio e no parentesco e expressam suas crenças, opiniões, modos de ver e de agir que dão significado e sentido para as suas vidas.

3. Diferenças entre a cidade e o campo

O predomínio político e a concentração da riqueza entre as classes e camadas sociais dominantes urbanas dos grandes centros, produziu o desprezo e a rejeição dos moradores urbanos falantes da língua dominante, principalmente por parte das camadas sociais formadas por trabalhadores intelectuais, em relação aos trabalhadores braçais rurais e suas formas de expressão, como atesta o tratamento depreciativo à linguagem caipira que sobrevive entre os moradores do campo de algumas regiões do Brasil e seus descendentes urbanos.

A violência simbólica legítima realiza, assim, uma brutal imposição de uma forma específica de comunicação, a linguagem dominante, tida como “culta”, contra os falares considerados deselegantes, incorretos, inadequados, vulgares, existentes no Brasil. Os trabalhadores intelectuais como professores, jornalistas, escritores, advogados etc., se consideram guardiões dos códigos linguísticos dominantes, escondendo que a sua autoridade é legitimada pela arbitrariedade com que as formas de falar e escrever “corretamente” são impostas sobre inúmeras outras formas de expressão. Nem é necessária a dissimulação da violência com a qual os praticantes de formas de expressão linguísticas desautorizadas são humilhados e excluídos socialmente. O que a quase totalidade dos trabalhadores intelectuais fazem questão de ignorar é que a redução de todas as formas de se comunicar, orais ou escritas, a uma forma única, tida como correta e elegante, leva a um empobrecimento da capacidade de comunicação humana e de expressão de significados, negando reconhecimento a algumas formas de expressão identitária. As expressões linguísticas são ilimitadas, infinitas e mutáveis e a princípio não haveria razão para aceitarmos que só uma forma de expressão deva ser privilegiada.

Ocorre, no entanto, uma relação de forças entre as formas de expressão linguísticas dominantes e autorizadas, e os falares marginalizados pela dominação cultural representada pela imposição de uma forma única e legítima de uso padronizado da língua portuguesa, que chega ao ponto de emudecer os não praticantes desta forma de comunicação padronizada, e assim perdem a voz, ou renunciam à própria fala alegando para si mesmos que “não sabem falar”.

Evidentemente, a necessidade de superação da herança do colonialismo não quer dizer que devemos ignorar os códigos culturais, experiências e linguagens de origem européia, como as ciências, artes e religiões, mas quer dizer, ao contrário, que devemos ter a capacidade de criticá-las, dimensionando-as como formas particulares de expressão cultural de populações e grupos particulares, sem dúvida relevantes, mas que não são superiores a nenhuma outra forma de expressão cultural dos povos espalhados pelo mundo.

4. Ab-rogação e apropriação

Ao invés de estereotiparmos os grupos sociais segundo o critério da gramática oficial, valorizar as formas linguísticas criadas pelos marginalizados pelas instituições dominantes leva ao reconhecimento das formas como os diferentes grupos representam a si mesmos, como se concebem, como imaginam a sua relação com os outros grupos e como expressam esse conhecimento sobre si mesmos através das formas de expressão que consideram mais adequadas.

A língua portuguesa formal, imposta como a única língua oficial do país, em meio a centenas de outras línguas existentes no Brasil, não é a única forma legítima de expressão e pode perfeitamente conviver com os dialetos e falares brasileiros das diferentes regiões e periferias das grandes cidades e com as línguas indígenas e quilombolas existentes no país. E isso será possível se reconhecermos, por exemplo, a legitimidade das noções de ab-rogação e apropriação próprios do pensamento pós-colonial. O termo ab-rogação, como nos ensina o professor Thomas Bonnici, “significa a rejeição de conceitos normativos oriundos das línguas européias” ou marginalização das línguas e dialetos híbridos dos colonizados, como é o caso do dialeto caipira no Brasil, entre outros. Em contrapartida, podemos colocar em relevo a importância da “apropriação”,

através da qual a língua européia se adapta a descrever o ambiente não-europeu em foco[...] A teoria da ab-rogação mostra que há um antídoto contra o aprisionamento do colonizado nos paradigmas conceituais do colonizador. Através da apropriação o colonizado assume a linguagem (e outros itens como o teatro, o filme, a filosofia) do colonizador e a põe a seu serviço. Portanto, é a maneira pela qual a cultura colonizada usa os instrumentos da cultura dominante para contrapor-se ao controle político do dominador.” (Bonnici, 2005, p. 13).

Em termos práticos, não se trata de propormos a substituição da língua portuguesa pelo tupi, como pretendia o Quaresma, de Lima Barreto. Mas se trata, isto sim, de propormos algo muito mais simples, como, por exemplo, que deixemos de considerar a língua dominante como superior e a única aceitável. Como também propõe o professor Martins (2003), “....somos um povo bilíngue, e o reconhecimento desse biliguismo seria fundamental no trabalho dos educadores, em particular para enriquecer a compreensão da língua portuguesa, última flor do Lácio, inculta e bela, mais bela ainda porque invadida por esse outro lado da nossa identidade social, que temamos em desconhecer”.

Concluindo

Uma tarefa dos intelectuais críticos é desafiar e transgredir os conhecimentos e as relações sociais propostas pelas instituições dominantes que concentram as posições de poder em nossa sociedade. As línguas, a filosofia, a literatura, a ciência e a teologia cristã foram difundidos em todo o mundo pelos povos europeus como se fossem os únicos saberes válidos.

Neste artigo sobre o dialeto caipira considerei como um pressuposto, seguindo a sugestão de Homi Bhabha (1998, 240), “que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e pensamento”, lições que podem contribuir para que nos libertemos do peso das estruturas de poder para que as nossas mentes e as nossas vidas sejam descolonizadas.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os caipiras de São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1983.

BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura : estratégias de leitura. Maringá, Eduem, 2000.

______. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá, Eduem, 2005.

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética de História, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discursos educacional – novas políticas em educação. Porto Alegre, Artes Médicas Sul, 1999.

GUIMARÃES, Eduardo. Entrevista a CAMPBELL, Ulisses. Jornal Correio Brasiliense, Brasília, 18 de julho de 2004.

HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG; Brasília, Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

Martins, José de Souza. Línguas brasileiras – dialeto caipira. In: http://www.sosaci.rog/balaio2.htm. Acessada em 03/06/2007.

Martins, José de Souza. “A proibição da língua brasileira”. In: Jornal Folha de São Paulo, 20 de julho de 2003.

SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo, Loyola, 2000.

VILLALTA, Luiz Carlos. “Uma Babel colonial”. In: Revista Nossa História, Ano 1, n. 5 / março de 2004, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2004.

ZILLES, Ana Maria Stahl. “O jeitinho brasileiro de falar português”. In: Revista Biblioteca Entre Livros, São Paulo, Duetto Editorial, 2005.

por WALTER PRAXEDES

Clique e cadastre-se para receber os informes mensais da Revista Espaço Acadêmico


clique e acesse todos os artigos publicados...

http://www.espacoacademico.com.br - Copyright © 2001-2007 - Todos os direitos reservados




















http://michelfm.blogspot.com/2007/12/os-caipiras-urbanos.html

sábado, 15 de dezembro de 2007

Os Caipiras Urbanos

[Introdução]
(Seminário apresentado em dezembro de 2007)


Dentro do sistema no qual vivemos as prioridades são mercadológicas, econômicas e políticas. Graças a isso nossa sociedade possui algumas características marcantes como as diferenças de classe social, o preconceito e a discriminação por causa das diferenças, a subversão dos valores, entre outras coisas. E devido a esses fatores associados aos meios de comunicação surgem os estereótipos e se prolifera a visão dualista.
No entanto sabemos que muitos grupos culturais mantêm seus valores, independente das influências e pressões que sofrem da mídia. Porque suas raízes são muito mais profundas do que a superficialidade capitalista. E a questão é encontrar essas raízes.
Todavia se analisarmos não de forma panorâmica a sociedade e a cultura, mas sim direcionando nosso foco especificamente a um grupo cultural e seus indivíduos, nos concentrando no comportamento desse sujeito será possível identificar seus valores e saberemos dessa forma qual é sua verdadeira identidade.

Os Caipiras Urbanos

Artigo de: Michel F.M.


A evolução cria os problemas para depois encontrar a solução, tem sido assim desde a pré-história, mesmo antes da escrita, da agricultura, das construções, da energia elétrica, dos meios de comunicação. E hoje em dia algumas pessoas insistem em proclamar a mídia como um mal necessário da sociedade pós-moderna, algumas ainda condenam a tecnologia como sendo a causa dos problemas. No entanto a história prova o contrário, o universo surgiu do caos segundo os cientistas e só depois retornou a calmaria e tem sido assim, do início dos tempos pra cá. O tempo foi dividido entre antes e depois de Cristo, devido a sua grandiosa importância histórica. Já os estudiosos de comunicação, fizeram uma divisão imaginária do tempo, antes e depois dos “Meios”.
Antes dos meios de comunicação existiam as pessoas, sujeitos de sua própria vida, com seus valores, crenças e cultura. Depois dos meios de comunicação continuam existindo essas pessoas, indivíduos capazes de fazer escolhas, providos de raciocínio e com a incrível habilidade de evoluir. Porque o maior dom do ser humano é a mudança, a transformação, a adaptação.
Dentro dessa lógica partimos para o nosso tema, o caipira urbano. Caipira, sujeito humilde, simples de tudo, trabalhador, com pouco estudo, crente em Deus, respeita a natureza e prefere tudo o que seja saudável e venha da terra. Esse é o caipira? Sim é. Porém essas características passam a ser transformadas em estereótipo no momento em que chegam à mídia e são disseminadas de forma distorcida, como caricaturas cômicas presentes no interior. Poderíamos analisar muitos exemplos disso nos meios de comunicação, como o “Jeca Tatu”, o “Nerso da Capitinga”, a “Filó” entre outros personagens engraçados que acentuam algumas poucas características do caipira. Ainda na televisão encontramos exemplos que são mais próximos da realidade, programas que valorizam a imagem do caipira e demonstram de maneira mais verdadeira sua identidade atual, espaços como “Viola minha viola” que há anos está no ar e mostra o lado mais rico da cultura caipira.
Atualmente um “reality show” intitulado “Simple Life” faz exatamente o inverso do que outros programas, que satirizam o interior. Esse programa aborda a vida de duas “patricinhas” da metrópole, que vão para o interior e não conseguem desempenhar nenhuma tarefa rural, por estas serem obrigações difíceis e exigirem conhecimento e habilidades específicas. Esse programa representa a vida no interior como ela realmente é, com suas dificuldades, alegrias e recompensas.
Para quem não conhece o caipira e nunca esteve no interior, todas essas representações podem “parecer” reais, no entanto, é inaceitável que essas representações sejam consideradas cem por cento reais. Porque nenhuma delas é totalmente verdadeira, todas partem de pressupostos, e algumas características que são de fato corretas.
A verdade menos contestável é que todos nós moradores do interior do estado de São Paulo, na região que abrange as cidades de Sorocaba, Jundiaí, Piracicaba, Campinas (Campinas sim!), Salto, Indaiatuba entre outras, todos somos caipiras e temos devido a nossa descendência interiorana carta branca para falar sobre nossos valores, costumes, cultura e crenças. Alguns de nós nasceram no sítio, em meio a agricultura; outros nasceram na cidade, mas com o costume de acordar junto com a alvorada, ir trabalhar, almoçar antes do meio dia, jantar às seis da tarde e ir deitar com o pôr-do-sol, para no outro dia repetir essa rotina e aos domingos quem sabe ir a missa e depois passear pela quermesse, tudo isso dentro da cidade, tem coisa mais caipira e maravilhosa do que essa? Sem falar naquele jovem que ajuda o pai na lavoura a semana inteira e no final de semana põem sua melhor roupa comprada no shopping e seu tênis de marca comprado com o dinheiro da plantação e vai para a “balada”, curtir a noite de sábado com os amigos. Esse garoto não é caipira? É. Tanto quanto aquele que faz faculdade, aprende conhecimentos sobre o mundo, trabalha em uma grande empresa, faz academia, pensa em fazer uma aula de idiomas porque em informática já é craque, e no almoço de domingo come polenta com pato, (abatido, diga-se de passagem, no fundo do quintal) junto com legumes colhidos na pequena horta de seu pai e depois do almoço, senta na varanda de casa para ouvir música de raiz, com a família reunida, então começam a contar os “causos” de antigamente e os olhos de seu avô brilham falando da época em que não tinha TV, mas as crianças nadavam no rio.
Todas estas pessoas são caipiras, todos nós somos caipiras. Porque produtos industrializados não dissolvem nossa cultura do interior (por mais que tentem), uma rotina estressante não destrói nossos valores e nada em nossa sociedade tem o poder de sufocar nossas raízes, porque elas são muito mais profundas do que qualquer superficialidade mercadológica, econômica e política.









http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/darcy-ribeiro/o-povo-brasileiro-14.php



Home O Povo Brasileiro (Darcy Ribeiro) - Página 14 Voltar

O Povo Brasileiro





Darcy Ribeiro

Mergulha numa cultura de pobreza, reencarnando formas de vida arcaica dos velhos paulistas que se mantinham em latência, prontas a ressurgir com uma crise do sistema produtivo. A população se dispersa e se sedentariza, esforçando-se por atingir níveis mínimos de satisfação de suas necessidades.

O equilíbrio é alcançado numa variante da cultura brasileira rústica, que se cristaliza como área cultural caipira. É um novo modo de vida que se difunde paulatinamente a partir das antigas áreas de mineração e dos núcleos ancilares de produção artesanal e de mantimentos que a supriam de manufaturas, de animais de serviço e outros bens.

Acaba por esparramar-se, falando afinal a língua portuguesa, por toda a área florestal e campos naturais do Centro-Sul do país, desde São Paulo, Espírito Santo e estado do Rio de Janeiro, na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso, estendendo-se ainda sobre áreas vizinhas do Paraná. Desse modo, a antiga área de correrias dos paulistas velhos na preia de índios e na busca de ouro se transforma numa vasta região de cultura caipira, ocupada por uma população extremamente dispersa e desarticulada. Em essência, exaurido o surto minerador e rompida a trama mercantil que ele dinamizava, a paulistânia se "feudaliza", abandonada ao desleixo da existência caipira.

O único recurso com que conta essa economia decadente são as enormes disponibilidades de mão-de-obra desocupada e de terras virgens despovoadas e desprovidas de qualquer valor, que os mais abonados obtêm por concessão em enormes sesmarias e os mais pobres e imprevidentes apenas ocupam como posseiros.

Com essa base se instala uma economia natural de subsistência, dado que sua produção não podia ser comercializada senão em limites mínimos. Difunde-se, desse modo, uma agricultura itinerante, a derrubar e queimar novas glebas de mata para cada roçado anual, combinada com uma exploração complementar das terras, das aguadas, das matas, através da caça, da pesca e da coleta de frutos e tubérculos. Sem nada vender, nada podiam comprar, voltando à vida autárquica de economia artesanal doméstica que satisfazia, nos níveis possíveis, às necessidades comprimidas a limites extremos.

Essas novas formas de vida importaram numa dispersão do povoamento por grandes áreas, com o distanciamento dos núcleos familiais. Não impuseram, porém, uma segregação, porque novas formas de convívio intermitente foram estruturando as vi- zinhas em unidades solidárias. Assim se formaram os bairros rurais, definidos por um informante de Melo e Souza ( 1964 ) como naçãozinhas ou grupos de convívio unificados pela base territorial em que se assentarti, pelo sentimento de localidade que os identifica e os opõe a outros bairros, e pela participação em formas coletivas de trabalho e de lazer.

Para essas populações rarefeitas, que, via de regra, só contavam para o convívio diário com os membros da família, assumem importância crucial certas instituições solidárias que permitem dar e obter a colaboração de outros núcleos nos empreendimentos que exigem maior concentração de esforços. A principal delas é o mutirão, que institucionaliza o auxílio mútuo e a ação conjugada pela reunião dos moradores de toda uma vizinhança para a execução das tarefas mais pesadas, que excediam das possibilidades dos grupos familiares. Assim, os moradores de um bairro sucessivamente se juntam para ajudar a cada um deles na derrubada da mata para o roçado, para o plantio e a limpeza dos cultivos, bem como para a bateação das safras de arroz e de feijão e, eventualmente, para construir ou consertar uma casa, refazer uma ponte ou manter uma estrada. Sempre que a tarefa interessava imediatamente a um dos moradores, cumpria a este prover alimentação e, ao fim dos trabalhos, oferecer uma festa com música e pinga. Assim, o mutirão se faz não só uma forma de associação para o trabalho, mas também uma oportunidade de lazer festivo, ensejando uma convivência amena.

As vizinhanças mais solidárias organizam-se, ainda, em formas superiores de convívio, como o culto a um santo poderoso, cuja capela pode ser orgulho local pela freqüência com que promove missas, festas, leilões, sempre seguidos de bailes. Cada núcleo, além da produção de subsistência, que absorve quase todo o trabalho, produz uns poucos artigos para o mercado incipiente, como queijos, requeijões e rapaduras, farinha de mandioca, toucinho, lingüiça, cereais, galinha e porcos. A eles se acrescentam os panos de algodão grosseiro, de fabrico doméstico, que chegam a servir como unidade de troca nessa economia não monetária.

A população caipira, integrada em bairros, preenche desse modo suas condições mínimas de sobrevivência. Os que se desgarram desse convívio, penetrando sós nos sertões mais ermos, estão sempre ameaçados de cair em anomia, sendo olhados por todos como gente rara, suspeita de incesto e de todas as formas de alienação cultural.

A vida rural caipira, assim ordenada, equilibra satisfatoriamente quadras de trabalho continuado e de lazer, permitindo atender às carências frugais e até manter os enfermos, débeis, insanos e dependentes improdutivos. Condiciona, também, o caipira a um horizonte culturalmente limitado de aspirações, que o faz parecer desambicioso e imprevidente, ocioso e vadio. Na verdade, exprime sua integração numa economia mais autárquica do que mercantil que, além de garantir sua independência, atende à sua mentalidade, que valoriza mais as alternâncias de trabalho intenso e de lazer, na forma tradicional, do que um padrão de vida mais alto através do engajamento em sistemas de trabalho rigidamente disciplinado.

Só nessas condições de recessão econômica é que a população branca e mestiça pobre e os mulatos livres têm acesso à terra.

Não por uma renovação institucional que garanta a propriedade dos posseiros, mas simplesmente porque, quebrados os vínculos mercantis pela inexistência de um mercado comprador, deixaria temporariamente de ter sentido o monopólio da terra como mecanismo adicional de conscrição da força de trabalho para as lavouras comerciais.

A liberdade incidental dessa existência autárquica duraria pouco, porque logo surgiria outra forma de viabilização da economia de exportação através da grande lavoura e, com ela, a proscrição legal ( 1850 ) do acesso à propriedade da terra pela simples ocupação e cultivo, através da obrigatoriedade da compra ou de formas de legitimação cartorial da posse, que eram inacessíveis ao caipira.

Com efeito, passadas as décadas de maior recesso ( 1790 a 1840 ), surgem e se expandem novas formas de produção agroexportadora, dando início a um lento processo de reaglutinação das populações caipiras em bases econômicas mercantis.

Tal se dá com o surgimento de novos cultivos comerciais de exportação, como o algodão e o tabaco e mais tarde o café, que reativariam as regiões caipiras. As estradas melhoram e se refazem os sistemas de transporte por tropas.

Simultaneamente, uma reordenação institucional se vai implantando no nível civil e no eclesiástico: as vizinhanças se transformam em distritos, os arraiais em cidades, providas já de certo aparato administrativo que entra a examinar a legalidade das ocupações de terras. A religiosidade espontânea se institucionaliza com a ereção de freguesias e, depois, de paróquias com vigários permanentes. Por fim, um poder estatal se instala, com serviços de polícia, que se capacitam a acabar com o banditismo espontâneo e a soldo, que se generalizara, aliciando aventureiros e vadios.

Essa penetração do poder público não se faz, porém, como uma extensão da justiça ou como uma garantia de bem comum.

O Estado penetra o mundo caipira como agente da camada proprietária e representa para ele, essencialmente, uma nova sujeição. Desde então, torna-se imperativo para cada pessoa colocar-se sob o amparo de um senhorio que tenha voz frente ao novo poder para escapar às arbitrariedades de que, doravante, está ameaçada. Para isso se fará compadre, ou foreiro, ou sequaz, ou eleitor - geralmente tudo isto -, de quem lhe possa assegurar a proteção indispensável.

Assim, o domínio oligárquico que remonopolizava a terra e promovia o desenraizamento do posseiro caipira, com a ajuda do aparelho legal administrativo e político do governo, ganha força e congruência, passando a exigir também as lealdades do caipira. Tal como ocorre ao sertanejo, seu pavor maior será doravante ver-se desgarrado, sem um senhor poderoso que se interponha, se necessário, entre ele e essa ordem impessoal, antipopular, todo-poderosa, que avança sobre o seu mundo.

O fator básico dessa reordenação social e econômica era o restabelecimento do sistema mercantil e com ele a valorização das propriedades. Desencadeia-se a disputa pelas terras de melhor qualidade, próximas das redes de transporte, utilizáveis para as lavouras comerciais, cada vez mais amplas, de algodão e de tabaco e para as novas lavouras de café, que começam a difundir-se. Nesse processo os cartórios se ativam para avalizar títulos de velhas sesmarias, verdadeiros ou falsificados, promovendo o desalojamento de antigos posseiros.

Todo um aparato jurídico citadino se coloca a serviço dessa concentração de propriedade. Propriedades pulverizadas por efeito de heranças sucessivas de famílias extensas se reconstituem por compra das parcelas de exploração inviável. Entram em ação os demarcadores de glebas a se fazerem pagar em terras pelos que não têm dinheiro. Multiplicam-se os grileiros, subornando juízes e recrutando as forças policiais das vilas para desalojar famílias caipiras, declaradas invasoras de terras em que sempre viveram. Postas fora da lei e submetidas à perseguição policial, elas são, finalmente, escorraçadas das terras à medida que sua exploração comercial se torna viável.

Com o crescimento prodigiosamente rápido das culturas de café, se acelera esse processo de reordenação social. O caipira é compelido a engajar-se no colonato, como assalariado rural, ou a refugiar-se na condição de parceiro, transferindo-se para as áreas mais remotas ou para as terras cujos proprietários não têm recursos para explorar os novos cultivos. O caipira apega-se a essa saída com todas as suas forças, procurando tornar-se parceiro, como meeiro, financiado pelo proprietário a quem entrega metade da produção; ou como terceiro, trabalhando por conta própria, mas pagando pelo direito ao uso da terra um terço das colheitas.

Essa condição lhe permite preservar a autonomia na marcação do ritmo de trabalho e lhe dá condições de manter suas formas globais de adaptação e de vida. Assegura- lhe, ainda, um status de quase proprietário, assim tratado pelos vendeiros, mediante a garantia de crédito, de colheita a colheita, que não é dado ao trabalhador assalariado.

A implantação do novo sistema produtivo se processa gradativamente, admitindo, por algum tempo, a coexistência das lavouras comerciais com a parceria tradicional. Isto porque o caráter mercantil da produção só afetava inicialmente a atividade produtiva central do proprietário, que não absorvia todas as terras, e até se conciliava bem com a presença de uma reserva de mão-de-obra na própria fazenda, aliciável para as tarefas que exigiam maior número de trabalhadores.

Aos poucos, porém, o novo sistema ganha força e congruência, indo buscar e desalojar o caipira em qualquer ermo em que se embrenhe, pela expansão contínua das áreas ocupadas pela economia de fazenda, obrigando-o a renovar sua opção entre o engajamento como assalariado rural ou novos deslocamentos, à procura de áreas mais atrasadas, ainda compatíveis com a parceria. A própria parceria se vai tornando menos satisfatória, confinada às terras mais pobres e mais distanciadas do mercado e onerada com novas exigências. Dentre elas o cambão, forma de corvéia que obriga o caipira e sua família a dar dias de trabalho gratuito ao proprietário e dias suplementares por cada animal de montaria que possua.

Apesar de todos esses óbices, o caipira espoliado de suas propriedades e sucessivamente expulsado de suas posses continua resistindo a submeter-se ao regime de fazenda. Toda a sua experiência o faz identificar o trabalho de ritmo dirigido como uma derrogação de sua liberdade pessoal, que o confundiria com o escravo. Mesmo depois de abolida a escravidão ( 1888), permanece esse critério valorativo, que considera humilhante o trabalho com horário marcado por toque de sino e dirigido por um capataz autoritário.

O caipira se marginaliza, apegando-se a uma condição e independência inviável sem a posse da terra. Assim é que, apesar da existência de milhões de caipiras subocupados, o sistema de fazendas teve de promover, primeiro, uma intensificação do tráfico de negros escravos e de apelar, depois, para a imigração européia maciça, que coloca milhões de trabalhadores à disposição da grande lavoura comercial.

Confinado nas terras mais sáfaras, enterrado na sua pobreza, o caipira vê, impassível, chegarem e se instalarem, como colonos das fazendas, multidões de italianos, de espanhóis, alemães ou poloneses para substituírem o negro no eito, aceitando uma condição que ele rejeita. Essa nova massa vinha, porém, de velhas sociedades, rigidamente estratificadas, que a disciplinara para o trabalho assalariado, e via na condição de colono um caminho de ascensão que faria dela talvez, um dia, pequenos proprietários. O caipira, despreparado para o trabalho dirigido, culturalmente predisposto contra ele, desenganado, desde há muito, de tornar-se proprietário, resiste no seu reduto de parceiro, que é para ele a condição mais próxima do ideal inatingível de granjeiro em terra própria.

As páginas de Monteiro Lobato que revelaram às camadas cultas do país a figura do Jeca Tatu, apesar de sua riqueza de observações, divulgam uma imagem verdadeira do caipira dentro de uma interpretação falsa. Nos primeiros retratos, Lobato o vê como um piolho da terra, espécie de praga incendiária que atiçava fogo à mata, destruindo enormes riquezas florestais para plantar seus pobres roçados. A caricatura só ressalta a preguiça, a verminose e o desalento que o faziam responder com um "não paga a pena" a qualquer proposta de trabalho. Descreve-o em sua postura característica, acocorado desajeitadamente sobre os calcanhares, a puxar fumaça do pito, atirando cusparadas para os lados. Quem assim descrevia o caipira era o intelectual-fazendeiro da Buquira, que amargava sua própria experiência fracassada de encaixar os caipiras em seus planos mirabolantes.

O que Lobato não viu, então, foi o traumatismo cultural em que vivia o caipira, marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente ao engajamento no colonato e ao abandono compulsório de seu modo tradicional de vida. É certo que, mais tarde, Lobato compreendeu que o caipira era o produto residual natural e necessário do latifúndio agroexportador. Já então propugnando, ele também, uma reforma agrária.

O sistema de fazendas, que se foi implantando e expandindo inexoravelmente para a produção de artigos de exportação, cria um novo mundo no qual não há mais lugar para as formas de vida não mercantis do caipira, nem para a manutenção de suas crenças tradicionais, de seus hábitos arcaicos e de sua economia familiar. Com a difusão desse sistema novo, o caipira vê desaparecerem, por inviáveis, as formas de solidariedade vicinal e de compadrio, substituídas por relações comerciais. Vê definhar as artes artesanais, pela substituição dos panos caseiros por tecidos fabris, e, com elas, o sabão, a pólvora, os utensílios de metal, que já ninguém produz em casa e devem ser comprados.

A ocupação agrícola das terras, o cercamento dos latifúndios com aramados, a expansão dos pastos e a presença do gado, mudando as condições ecológicas, tornam impraticáveis a caça e a pesca. Assim, perde o caipira um complemento alimentar básico que permitia melhorar sua dieta frugal e carente. Ao fim do processo de implantação do sistema de fazendas, mesmo nos ermos onde se acoitara, fugindo ao engajamento compulsório, o caipira tenta manter uma condição tornada obsoleta e inviável.

O golpe derradeiro na vida do caipira tradicional, que acaba por marginalizá-lo definitivamente, se dá com a ampliação do mercado urbano de carne, que torna viável a exploração das áreas mais remotas e de terras pobres ou ricas para a criação do gado. A partir de então, a cada roça de caipira ainda consentida para derrubar a mata ou para desbastar capoeiras se segue o plantio de capim e a desincorporação automática da área do sistema antes prevalecente, para devotá-la ao pastoreio. As antigas propriedades latifundiárias, que se faziam autárquicas com o concurso de aglomerados de caipiras estruturados em bairros, vão sendo despovoadas de gente para encher-se de gado. Nessas fazendas de criação, uma parcela ínfima de trabalhadores substitui, como vaqueiros, a antiga população residente que se vê, assim, expulsa. O novo procedimento, estando ao alcance até mesmo dos latifundiários menos providos de recursos, porque utiliza o próprio caipira e até a parceria para liquidar com ele, importa numa limitação progressiva das terras disponíveis para o trabalho agrícola.

Massas de caipiras são, assim, obrigadas a novas opções. Agora já não se oferece nem mesmo a oportunidade de engajar-se no colonato. Trata-se de escolher entre permanecer na própria parceria, tornada precaríssima, em que ainda subsiste; mergulhar no mundo dos posseiros invasores de terras alheias; concentrar se nos terrenos baldios como reserva de mão-de-obra para servir às fazendas despovoadas, nas quadras de trabalho intenso; ou, finalmente, incorporar-se às massas marginais urbanas como aspirante à proletarização.

As instituições básicas da cultura caipira desintegraram-se ao impacto da onda renovadora representada pelas novas formas de produção agrícola e pastoril de caráter mercantil. Foram destruídas, porém, sem que se ensejasse aos agregados rurais formas compensatórias de acomodação que lhes garantissem um lugar e um papel na nova estrutura. Esse papel teria sido sua integração na categoria de pequenos proprietários que, talvez, lhes permitisse incorporar as inovações tecnológicas, alargando as suas aspirações à medida que se integrassem na economia nacional. O monopólio da terra, fundado no domínio do centro do poder político pela oligarquia agrícola, obliterou esse caminho.

Uma comunidade caipira que conserva as formas tradicionais de sociabilidade é, hoje, uma sobrevivência rara, confinada às áreas mais remotas e menos integradas no sistema produtivo. Todavia, o número de trabalhadores autônomos rurais, em sua enorme maioria parceiros e pequenos arrendatários, supera 5 milhões. Já não são aqueles caipiras de modos de existência arcaica e pobre mas satisfatória, a seu próprio juízo. Constituem uma vasta camada marginal à estrutura e que suporta as mais penosas condições de vida, ainda inferiores aos mínimos quase incomprimíveis da economia caipira. E muito piores, porque subsistem face a face com condições superiores de vida, de que têm notícia ou que podem apreciar e que atuam como ideais conformadores de suas aspirações. É-lhes impossível, todavia, integrar-se nesses novos estilos de consumo, pela estreiteza da própria estrutura social em que estão inseridos, fundada na propriedade latifundiária, incapaz de melhorar as condições de vida da massa de parceiros e, também, de incorporá-los no trabalho assalariado.

Caem, assim, na condição de trabalhadores eventuais, os bóias-frias.

A rapidez com que, em diversas regiões, nos últimos anos, os parceiros se interessaram pelo movimento de sindicalização rural, antecipando-se aos núcleos de assalariados agrícolas, indica, de um lado, sua independência maior e sua capacidade de conduta autônoma e, de outro, o grau de conscientização de sua própria miséria e de revolta contra a ordem social que a sustenta. Essa mole de milhões de caipiras, que são os verdadeiros camponeses do Brasil, porque reivindicantes seculares da posse das terras que trabalham, está como que à espera do surgimento das formas de luta que, exprimindo sua inconformidade, desencadeiem a rebelião rural.

O sistema de fazendas alcançou, com a implantação das grandes lavouras de café, um novo auge só comparável ao êxito dos engenhos açucareiros. Seu efeito crucial foi reviabilizar o Brasil como unidade agroexportadora do mercado mundial e como um próspero mercado importador de bens industriais. Outro efeito da cafeicultura foi modelar uma nova forma de especialização produtiva e configurar um outro modo de ser da sociedade brasileira. Culturalmente, a nova feição é basicamente caipira. Mas a essa matriz se acrescentam outras dimensões pela incorporação, na primeira fase, de uma grande massa escrava e, mais tarde, da contribuição de imigrantes europeus, integrados maciçamente no colonato. A essas matrizes se somariam, ainda, elementos tomados de outras variantes culturais brasileiras pela convergência para as fazendas de gente vinda das diversas regiões do país.

O cultivo do café, que se praticava um pouco por todo o Brasil, como raridade e para consumo local, ganha significação econômica com as primeiras grandes lavouras plantadas na zona montanhosa próxima ao porto do Rio de Janeiro. O sucesso das exportações - que crescem de 3178 sacas, na década de 1820, a 51631 sacas, na década de 1880 - promove rapidamente o novo cultivo à liderança em que se manterá, daí em diante, como a atividade econômica fundamental do Brasil, passando de 18,4 por cento do valor das exportações, na primeira das citadas décadas, a 61,5 por cento, na última.

Para implantar o empreendimento cafeeiro contava-se com abundante disponibilidade de terras apropriadas e de mão-de-obra escrava subutilizada desde a decadência da mineração e, ainda, com um sistema adequado de transporte e de comercialização.

O modelo empresarial que primeiro se impõe é a fazenda escravocrata, que tem de comum com o sistema de plantação açucareira a grande extensão territorial, o alto grau de especialização e de racionalização das atividades produtivas, o caráter mercantil do produto que exporta e a necessidade de concentrar nas fazendas grandes contingentes de mão-de-obra servil, rigidamente disciplinada. Exige também enormes investimentos financeiros, sobretudo para a aquisição de terras que se valorizam rapidamente e para a compra da escravaria e sua reposição, uma vez que as singelas instalações de beneficiamento são construídas nas próprias fazendas. O cafezal, como um plantio permanente, demanda grande concentração de mão-de-obra na etapa preparatória da derrubada das matas e de cuidados especiais nos primeiros quatro anos. Daí em diante, só reclama grande quantidade de mão-de-obra por ocasião da colheita.

Nessas circunstâncias, a fazenda escravocrata conta sempre com um excedente de trabalhadores utilizado nas tarefas de subsistência e no artesanato. Estrutura-se assim, como grande unidade autárquica, em que a atividade agrícola-mercantil é cercada por uma série de atividades ancilares, cujo pessoal se mobiliza todo para a colheita.

As fazendas escravocratas de café da área montanhosa fluminense alcançaram logo o vale do Paraíba e, daí, se irradiaram, progressivamente, para as matas de Minas Gerais, do Espírito Santo e de São Paulo, principalmente. As maiores delas eram comunidades de quinhentas até 2 mil pessoas, sobretudo escravos, que produziam quase tudo que consumiam, desde a roupa da escravaria, as casas, os mantimentos, até as instalações e o mobiliário da própria fazenda. Mas também adquirem muitos bens industriais, tanto para o consumo dos fazendeiros como para o trabalho.

O recrutamento da força de trabalho servil para a cafeicultura se fez, primeiro, regionalmente, com a aquisição dos negros excedentes das zonas de mineração. O sucesso do empreendimento permitiu, a seguir, a promoção de uma verdadeira drenagem de escravos de outras áreas decadentes, como os algodoais maranhenses e os engenhos açucareiros. A tudo isso se acrescenta, depois, a importação direta de cerca de meio milhão de africanos. Apesar desses suprimentos, as fazendas de café viviam em carência permanente de mão-de-obra, em virtude de seu ritmo intenso de expansão e de desgaste da escravaria no eito, expressivo das condições miseráveis de vida e de trabalho a que eram submetidos. Nos cinco anos imediatamente anteriores à proibição do tráfico ( 1850 ), entram oficialmente nos portos brasileiros cerca de 250 mil escravos africanos, cujo preço seria aproximadamente de 15 milhões de libras esterlinas, que equivaliam a mais de 36 por cento do valor das exportações.

Nessa fase, o proprietário reside na fazenda, compondo o mesmo quadro contrastante do Nordeste açucareiro, representado pela oposição entre a vivenda senhorial e a senzala. Faz-se servir, também, de numerosa criadagem doméstica a que acrescenta, por vezes, preceptores europeus para a educação dos filhos na própria fazenda e padres residentes para os serviços religiosos.

A partir da segunda metade do século passado, quando o café já domina a economia brasileira, os cafeicultores se constituem numa oligarquia nacional cada vez mais poderosa. Faz-se mais autêntica e forte que a açucareira, porque domina todo o complexo econômico do café, desde o plantio à exportação, enquanto aquela sempre permaneceu submetida ao controle do patronato parasitário de exportadores e, sobretudo, porque se capacita, prontamente, a utilizar o poder político na defesa de seus interesses econômicos.

A proximidade da Corte imperial facilitava, também, o exercício dessa influência, que acaba se tornando hegemônica.

Nessa camada senhorial hegemônica é que o império brasileiro procurou fundar a nobreza que o sustentaria, distribuindo títulos nobiliárquicos e recrutando nela os chefes de gabinete e ministros de Estado. Os cafeicultores tornam-se, assim, os barões, viscondes, condes e marqueses do Império, contraparte fidalga do sistema escravocrata, consciente de que não sobreviveria à abolição, como efetivamente ocorreu quando esta se tornou inevitável pela pressão da opinião pública citadina.

A abolição, representando embora a simples devolução do escravo à posse de si mesmo, importava em dois efeitos econômicos cruciais e nas mais profundas conseqüências sociais. No plano econômico, expropria a parcela maior de capital da principal classe proprietária, arruinando-a, e a compele a uma mais ampla redistribuição da renda com a remuneração do trabalho através do salário. A ruína financeira dos barões do café provoca uma abrupta substituição de proprietários dos cafezais com conseqüências positivas para o sistema econômico global, dadas as características modernas do novo empresariado e a vantagem que representaria para ele não ter que investir recursos na compra de escravos. O segundo efeito teve conseqüências sociais mais profundas, pela elevação que propiciaria do nível de vida das populações, principalmente nos setores em que havia disputa de mão-de-obra, como era o caso da cafeicultura. Para o escravo, a abolição representou a oportunidade de exercer opções sobre o seu destino e de reconquistar a dignidade humana e o auto-respeito de que fora despojado. Essa liberdade seria, porém, limitada pelo monopólio da terra, que o obrigaria a engajar-se no serviço de algum proprietário e ater-se ao subconsumo a que sempre estivera submetido.

Com efeito, o negro escravo fora condicionado, por toda a sua experiência anterior, a lutar contra o seu desgaste no trabalho, do qual procurou se poupar de todos os modos, como medida elementar de autopreservação. Fora igualmente habituado a uma dieta frugalíssima e a posses mínimas, que se reduziam aos trapos que trazia sobre o corpo. E fora, ainda, reduzido a si mesmo, como indivíduo, pela impossibilidade de manter vínculos familiares, já que suas mulheres eram também coisas alheias e seus filhos igualmente propriedade do amo.

Com as motivações elementares decorrentes desse condicionamento o negro forro inicia sua integração no papel de trabalhador livre. Sua reação inevitável é reduzir as obrigações de trabalho disciplinado ao mínimo indispensável para prover suas elementaríssimas necessidades. Nessas condições, nenhum estímulo representado pela elevação do ganho o atingirá. O valor fundamental que cultua é o ócio e a recreação.

Seu nível de aspirações fora entorpecido pela inculcação de valores que limitavam ao extremo o número de coisas desejáveis e apropriadas à condição humana que ele se atribuía. A construção de uma outra auto-imagem só seria alcançada nas gerações seguintes, que, crescendo livres, se fariam progressivamente mais enérgicas e ambiciosas. Assim, o negro retoma o trabalho no eito como assalariado livre para exercê-lo com eficácia ainda menor do que a que alcançara como escravo. E quando se encontra próximo a áreas de terras desocupadas prefere caipirizar-se, integrando um núcleo de economia de subsistência, a engajar-se na condição de assalariado rural permanente.

Alarga-se, por esse processo, com a abolição, a camada marginal absenteísta que refuga o trabalho nas fazendas. Aos caipiras originais, brancos e mulatos, por vezes ex-proprietários ou posseiros, pleiteantes eternamente insatisfeitos das terras em que trabalham, se soma essa nova camada de marginalizados. Esses, em condições ainda mais precárias porque, em lugar de reivindicar a posse da terra e uma condição de dignidade superior à do colono, o que desejam é simplesmente sobreviver, atendendo a seu horizonte limitadíssimo de aspirações. Nessas circunstâncias, ao engrossarem a massa marginal, esses contingentes negros alforriados se constituem num subproletariado que, além de mais miserável, se veria segregado da primeira, predominantemente branca e mestiça, pelo preconceito racial que dificultará a tomada de consciência de todos eles sobre a exploração de que uns e outros eram objeto.

A abolição, seguida do regime republicano que liquida com a escravidão e com a fidalguia, não abala, porém, o reinado do café, que se faz cada vez mais poderoso. É regido, agora, por cafeicultores que se fazem os grandes próceres republicanos e por um novo sistema de trabalho que se irá aproximando paulatinamente do assalariado. É a cafeicultura do colonato que se encaminha para a monocultura e se funda numa divisão de trabalho na qual os cuidados agrícolas na plantação são entregues principalmente a imigrantes. europeus e as outras tarefas a trabalhadores eventuais, de fora da fazenda. A derrubada da mata para o plantio de novos cafezais fica a cargo de grupos móveis especializados que trabalham, geralmente, por empreitada com mão-de-obra ex-escrava ou de antigos parceiros. A colheita, exigindo maior concentração de trabalhadores faz-se, também, com a ajuda de estranhos aliciados nas mesmas fontes, que acabam por estabelecer-se nas vizinhanças das fazendas como reservas de mão-de-obra.

As novas fazendas já se abrem na zona de matas do interior de São Paulo, sendo por vezes antecipadas pelos trilhos das estradas de ferro que lhes abrem caminho rumo a oeste. A introdução do trabalhador europeu nas fazendas de café foi um processo lento, alcançado pela pertinácia de cafeicultores empenhados na solução de seu maior problema: a falta de mão-de-obra, agravada primeiro pela proibição do tráfico e depois pela abolição. As primeiras tentativas que procuravam sujigar o imigrante a um sistema renovado da velha parceria provocaram reclamações consulares e escândalos na imprensa européia, a que os brasileiros são especialmente sensíveis. Eram prematuras, porque, apesar das condições de penúria prevalecente na Europa, o imigrante não aceitava a coexistência com o escravo. Somente após a abolição, estabeleceu-se uma onda regular e ponderável de provimento de mão-de-obra européia, que, em fins do século passado, atingia a 803 mil trabalhadores, sendo 577 mil provenientes da Itália.

Essa disponibilidade de mão-de-obra européia correspondia à marcha do capitalismo-industrial que ia desenraizando dos campos e lançando às cidades mais gente do que as fábricas podiam ocupar. Cada país europeu atingido pelo processo exportava milhões de pessoas. Primeiro emigram das Ilhas Britânicas; depois da França, mais tarde da Alemanha, e da Itália; por fim da Polônia, da Rússia e de países balcânicos. Dá-se, assim, uma oferta de trabalhadores europeus mais barata que os escravos africanos e também mais eficazes por sua adaptação aos novos regimes produtivos.

Seu ingresso no mercado de trabalho brasileiro além de representar a solução salvadora dos problemas da cafeicultura teve vários outros efeitos. Entre eles, o de fator dissuasório da luta silenciosa e incruenta que caipiras e negros forros travavam pela conquista da condição de granjeiros. O de desvalorizar o trabalhador nacional, que, em face da disponibilidade dessa força de trabalho mais qualificada, perde na competição e se vê impedido de galgar aos poucos postos mais bem remunerados que o sistema criaria. Finalmente, o de orientar para os seringais da Amazônia o translado de sertanejos nordestinos, porque sua rota natural, que seria a marcha para o sul, se vê obstruída pela saturação por imigrantes europeus da busca de braços para a grande lavoura. Outro resultado dessa incorporação maciça de trabalhadores estrangeiros foi a de retardar a proletarização e conseqüente politização como operários fabris dos antigos caipiras e dos ex-escravos, que só teriam oportunidade de ascender aos setores mais dinâmicos da economia modernizada depois de esgotada a disponibilidade de mão-de-obra européia.

Os colonos eram contratados na Europa mediante o fornecimento de passagens para a família, a garantia de ajuda de manutenção n,o primeiro ano e o recebimento de um trato de terras para suas lavouras de subsistência. A essas condições foi necessário acrescentar-se, mais tarde, um salário anual fixo e um ganho variável segundo a produção. Como as despesas de passagem eram cobertas pelo governo, só as outras condições pesavam diretamente sobre o fazendeiro. Essas regalias, muito superiores às oferecidas ao caipira, explicam-se pela capacidade do colono - assistido pelos corpos consulares e apoiado pela imprensa de seus países - para exigir melhores condições de trabalho. Efetivamente, é o colonato imigrante que, por esse sistema, implanta o regime assalariado na vida rural brasileira, aceitando uma rigorosa disciplina de trabalho mas, em compensação, fazendo-se pagar efetivamente e pagar mais. Movido por um horizonte mais amplo de aspirações e contando com um melhor ajustamento ao trabalho assalariado, o imigrante produzia mais e melhor. Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê de sua capacidade de poupança, libertar-se da condição de Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê de sua capacidade de poupança, libertar-se da condição de colono para se fazerem pequenos empresários. Seus filhos já brasileiros seriam operários dos centros nacionais industriais nascentes.

As novas fazendas estruturadas de acordo com o sistema de colonato se fazem progressivamente monocultoras e, simultaneamente, acrescentam à plantação um elemento a mais, que é o barracão. Aí, o fazendeiro se faz comerciante para prover aos colonos de tudo que necessitam, mas também para recuperar o máximo dos salários pagos. Assim, os contratos mais vantajosos e já monetários passam a deteriorar-se para o trabalhador rural, sujeitos a duas reduções. Primeiro, a inflação que diminui substancialmente o valor dos contratos de plantio de café, geralmente de quatro anos. Segundo, a exploração nos fornecimentos feitos pelo barracão. Nessas circunstâncias, o colono só conseguiria poupar à custa de uma compressão violenta de seus gastos, permanecendo a maioria deles jungida ao sistema por dívidas insaldáveis e vendo esvair-se sempre a suspirada oportunidade de se fazerem granjeiros.

No sistema de colonato, o fazendeiro já é um absenteísta. Reside na cidade e dirige sua propriedade através de administradores. Mantém, contudo, no regime republicano, a posição hegemônica conquistada no Império, perpetuando-se no poder um patriciado oligárquico, que coloca a serviço do patronato cafeicultor toda a máquina governamental. A própria autonomia dos estados, de que a primeira República se fez tão zelosa, explica-se por esse esforço continuado do cafeicultor de tudo submeter aos seus interesses. Entre eles, a transferência ao Estado dos controles e da faculdade de dispor das terras devolutas, que assumiram enorme importância nas áreas da cafeicultura.

Além do controle e do comando político que faziam sair de suas hostes, quase todos os presidentes civis e a maioria dos ministros, os fazendeiros de café não só mantiveram mas aprimoraram seus velhos mecanismos de defesa como classe.

O principal deles era, talvez, o controle da taxa de câmbio - que variava cada vez que caíam os preços internacionais do café -, para continuar a pagar-lhes a mesma importância em moeda local. A essa degradação da moeda, seguem-se empréstimos externos, destinados a defendê-la, o que aumentava continuamente a dívi da externa do país, mas permitia transferir os prejuízos do setor exportador para a vasta camada importadora, constituída por toda a população, num país sem indústria, que dependia do comércio internacional para quase tudo.

Mais tarde, esses procedimentos seriam levados a extremos com a política de "valorização", que consistia na compra das safras para estocar com recursos obtidos pelos governos estaduais, mediante empréstimos no exterior. Quando sobreveio a crise de 1929, novas medidas se impuseram em face da impossibilidade de obter empréstimos internacionais.

O governo federal foi induzido, então, a assumir o papel de comprador. Quando os estoques alcançavam quantidades fabulosas, notoriamente invendáveis, era levado a comprar o café para queimá-lo a fim de manter os preços internacionais. Os principais efeitos dessa política - além da socialização dos prejuízos pela transferência para a coletividade das perdas decorrentes do subsídio à cafeicultura - foram a expansão constante das plantações e, com elas, da oferta, agravando-se cada vez mais o problema. Outra conseqüência foi seu efeito de subvenção indireta à implantação da cafeicultura em outros países pela manutenção de preços atrativos, com o que o Brasil acabou por perder sua posição quase monopolística.

Esses mecanismos, conduzindo à retração das rendas públicas e às emissões para custear a compra das safras e para dar cobertura aos déficits orçamentários decorrentes, provocaram enorme pressão inflacionária, mantendo o país em permanente crise financeira, de que só os exportadores conseguiam safar-se.

Nenhuma força pôde, entretanto, opor-se a esses interesses hegemônicos, cujo desatendimento conduziria a crises ainda mais graves pela recessão, que resultaria do abandono das plantações, principal fonte de trabalho remunerado e quase único setor de aplicação de capitais.

A oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores poderes políticos no período imperial e no republicano, é responsável por algumas das deformações mais profundas da sociedade brasileira. A principal delas decorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação da renda nacional, da sua arraigada discriminação contra os negros escravos ou forros e contra os núcleos caipiras que lhe resistiam, bem como contra as massas pobres que cresciam nas cidades. Nessa disputa e nessa discriminação senhorial é que devem ser procuradas as razões pelas quais o Brasil se atrasou tão gritantemente em relação aos demais países latino-americanos e a qualquer outro povo do mesmo nível de desenvolvimento, tanto na abolição da escravatura como na imposição ao Estado da obrigação de assegurar educa ção primária à população e na extensão aos trabalhadores rurais dos direitos de sindicalização e de greve.

A Independência e a República, que em quase toda a América deram lugar a um profundo esforço nacional por elevar o nível cultural da população, capacitando-a para o exercício da cidadania, não ensejaram um esforço equivalente no Brasil. Esse descaso para com a educação popular bem como o pouco interesse pelos problemas de bem-estar e de saúde da população explicam-se pelo senhorialismo fazendeiro e pela sucessão tranqüila, presidida pela mesma classe dirigente, da Colônia à Independência e do Império à República. Não ensejando uma renovação de liderança, mas simples alternância no mesmo grupo patricial oligárquico, se perpetua também a velha ordenação social.

Nessas condições, toda participação democrática na vida política se reduz aos grupos de pressão oligárquicos em disputa pelo controle das matérias que afetavam seus interesses.

Nessa república de fazendeiros, os problemas do bem público, da justiça, do acesso à terra, da educação, dos direitos dos trabalhadores eram debatidos tal como a democracia, a liberdade e a igualdade. Isto é, como meros temas de retórica parlamentar. A máquina só funcionava substancialmente para mais consolidar o poder e a riqueza dos ricos. Como o resultado social dessa política era um atraso vexatório com respeito aos Estados Unidos, por exemplo, se desenvolve nas classes dominantes uma atitude de franco descontentamento para com o próprio povo, cuja condição mestiça ou negra explicaria o atraso nacional.

Em conseqüência, aos motivos econômicos se somam incentivos ideológicos para a realização de enormes investimentos públicos a fim de atrair ao país colonizadores brancos, na qualidade de reprodutores destinados a "melhorar a raça". E não se queriam lusitanos porque também contra seus avós portugueses se rebelava a alienação oligárquica, convencida de sua própria inferioridade racial e que explicava seus êxitos pessoais como exceções.

Examinando a expansão da economia cafeeira verifica-se que espacialmente ela constituiu uma fronteira móvel que, envolvendo milhões de pessoas, progrediu da costa fluminense para o oeste. Nessa marcha atingiu, primeiro, as matas do estado do Rio de Janeiro, depois as do Espírito Santo, mais tarde as da zona da mata do sul de Minas Gerais, por fim, as de São Paulo. Essa marcha prosseguiu pelo noroeste do Paraná, penetrando em território paraguaio, e subiu, depois, pelo Mato Grosso do Sul e Rondônia.

Essa onda móvel difundiu-se envolvendo bolsões ocupados por índios hostis até então inatingidos pela civilização, nas matas de Minas Gerais e do Espírito Santo (1910) e de São Paulo ( 1911 ), bem como formas antigas de ocupação econômica como os núcleos caipiras, a tudo levando de roldão.

Avançou instrumentada por estradas de ferro e rodovias que a ligavam aos portos, conduzindo, floresta adentro, um sistema comercial articulado internacionalmente, semeando vilas e cidades onde se instalava. Representou, por isso, um papel modernizador e integrador que acabou criando a área econômica mais ampla e de maior densidade do país.

O café não se alastra, porém, sobre novas terras de mata, mantendo as já conquistadas. Sua retaguarda é sempre o deserto e neste fato se encontra o motor real do seu impulso itinerante.

Sendo a terra o fator mais abundante e relativamente menos oneroso da produção cafeeira, sobre ela é que recai, sempre que possível, a poupança empresarial. Derruba- se a floresta virgem e plantam-se novos cafezais sem quaisquer cuidados culturais que importassem em ônus para o empresário, usando e desgastando a terra num primitivismo tecnológico que quase transformava a agricultura num extrativismo.

Assim é que só em zonas de excepcional fertilidade do solo, os cafezais se fixam realmente como uma cultura permanente. O procedimento comum foi sempre abrir as lavouras esperando obter safras por uma década ou menos, até que uma geada destruísse a plantação ou que o cafezal envelhecesse por desgaste do solo.

Operando através desse processo extrativista, a cafeicultura se estruturava como uma fronteira viva que se movia sempre à frente, conduzindo consigo os capitais, os trabalhadores e a riqueza; e deixando para trás enormes áreas devastadas e erodidas.

Aí se instala o pastoreio, geralmente em mãos de outro proprietário, que procura fazer vicejar capim onde outrora crescia o cafezal. A nova economia não pode manter, porém, o mesmo nível de captação de mão-de-obra; nem de utilização da estrada de ferro que atravessara a mata a duras penas e a custos sociais altíssimos; nem a rede urbana que se implantara. Toda a região entra, assim, em decadência, configurando a paisagem típica das cidades mortas e estabelecendo outra sociedade e cultura da pobreza.

Eventualmente, em algumas áreas se reativa uma nova produção agrícola, como ocorre em algumas áreas que se tornam principais produtoras de açúcar e álcool. No Paraná, a opção pelo trigo e pela soja foi a solução, porque as melhores terras estavam sujeitas a geadas. O preço dessa reversão foi a decadência de uma zona rural de prosperidade generalizada, para uma outra paisagem monocultora, que atirou mais de um milhão de lavradores à procura de novas áreas tão distantes como Rondônia.

Para avaliar o preço social desse desgate de terras basta comparar o número de trabalhadores que podem ser empregados numa mesma área para as tarefas de derrubada da mata e do plantio dos cafezais; sua posterior redução, quando cumpre apenas cuidar da plantação e fazer as colheitas anuais; e, finalmente, quando desgastada é entregue à criação de gado. A proporção - que é de cem trabalhadores na primeira etapa para trinta na segunda e um, apenas, na última - explica como e por que a fronteira móvel do café, integrada por milhões de trabalhadores, segue sempre à frente, deixando atrás de si um quase deserto humano. E, como conseqüência, a morte das cidades, os déficits das ferrovias, a falência do comércio.

Em certas áreas de terras mais pobres, como o nordeste de São Paulo e algumas zonas paranaenses, as cidades nascentes da época da derrubada e do plantio mal chegam a amadurecer pela rapidez com que o surto as atravessa. Morrem antes de crescer, com suas igrejas incompletas, com o casario que jamais se conclui, o comércio decadente, e todos os que se agarram a esses bens lançados à miséria.

No Paraná, o café encontrou uma terra de promissão na região de Londrina, pela qualidade extraordinária dos solos e, sobretudo, porque ali a ocupação não se fez através do latifúndio.

A zona foi colonizada por uma companhia inglesa na forma de pequenas propriedades, ensejando a instalação, como proprietária, de milhares de famílias empenhadas em defender um solo que é seu.

A sociedade resultante contrasta vivamente com as zonas cafeeiras do latifúndio, revelando suas singularidades no nível de vida do povo, na prosperidade crescente das cidades e do seu comércio, e na conduta política autônoma, oposta às velhas oligarquias paranaenses e paulistas. Para além da zona de Londrina, todavia, a fronteira móvel do café prosseguiu por terras já impraticáveis e, geralmente, pela expansão dos latifúndios. Nos últimos anos, essa onda, que só tem diante de si o rio Paraná, começou a penetrar no Paraguai.

O que não aconteceu com o Brasil aconteceu em São Paulo, que se viu avassalado pela massa desproporcional de gringos que caiu sobre os paulistanos. Em 1950, os estrangeiros, principalmente italianos e seus descendentes, eram mais numerosos do que os paulistas antigos. A esse soterramento demográfico corresponde uma europeização da mentalidade e dos hábitos.

A própria Semana de Arte Moderna, que foi uma reação a esse avassalamento, foi também por seu estilo a forma mais expressiva desse eurocentrismo. Tudo bem, porque essa gente quase toda acabou se abrasileirando belamente. Restam, porém, aqui e ali, alguns alunados apátridas que ainda não saíram do fundo do navio em que seus avós vieram. Perderam sua pátria de origem e estão soltos à busca de um pouso.

Seu único compromisso é consigo mesmos e com as vantagens que possam ganhar.

Não têm nenhuma noção e muito menos orgulho da façanha que representou construir e levar à independência esse paísão que já acharam feito. Em conseqüência, tal como os argentinos fazem com seus cabecitas negras, chegam a olhar os trabalhadores nordestinos e inclusive os caipiras paulistas, a que chamam baianos, com desprezo.

Ouvi um politicão paulista dizer que o que São Paulo tem de analfabetismo e atraso é culpa dessa presença baiana, e propor que se pagasse a viagem de volta deles para suas terras. Afortunadamente essa é uma minoria.

6 BRASIS SULINOS: GAÚCHOS, MATUTOS E GRINGOS

"Essa indiada é toda gaúcha.

Dito gauchesco" A expansão dos antigos paulistas atingiu e ocupou também a região sulina de prévia dominação espanhola e a incorporou ao Brasil. Em interação com outras influências, porém, deu lugar ali a uma área cultural tão complexa e singular que não pode ser tida como um componente da paulistânia. Ao contrário das outras áreas conformadas pelos paulistas, como a de mineração, a de economia natural caipira e a de expansão da cafeicultura, que, apesar de suas diferenciações econômico-sociais, apresentam uma base cultural comum, na região sulina surgiram modos de vida tão diferenciados e divergentes que não se pode incluí-los naquela configuração e nem mesmo tratá-los como uma área cultural homogênea.

A característica básica do Brasil sulino, em comparação com as outras áreas culturais brasileiras, é sua heterogeneidade cultural. Os modos de existência e de participação na vida nacional dos seus três componentes principais não só divergem largamente entre si como também com respeito às outras áreas do país.

Tais são os lavradores matutos de origem principalmente açoriana, que ocupam a faixa litorânea do Paraná para o sul; os representantes atuais dos antigos gaúchos da zona de campos da fronteira rio-platense e dos bolsões pastoris de Santa Catarina e do Paraná, e, finalmente, a formação gringo-brasileira dos descendentes de imigrantes europeus, que formam uma ilha na zona central, avançando sobre as duas outras áreas.

A coexistência e a interação desses três complexos opera ativamente no sentido de homogeneizá-los, difundindo traços e costumes de um ao outro. A distância que medeia entre os respectivos patrimônios culturais e, sobretudo, entre seus sistemas de produção agrícola - a lavoura de modelo arcaico dos matutos, o pastoreio gaúcho e a pequena propriedade explorada intensivamente dos colonos gringos - funciona, porém, como fixadora de suas diferenças. Mesmo em face dos efeitos homogeneizadores da modernização decorrentes da industrialização e da urbanização, cada um desses complexos tende a reagir de modo próprio, integrando-se com ritmos e modos diferenciados nas novas formas de produção e de vida, dando lugar a estilos distintos de participação na comunidade nacional.

O Brasil sulino surge à civilização pela mão dos jesuítas espanhóis, que fazem florescer no atual território gaúcho de missões a principal expressão de sua república cristã-guaranítica. É certo que eles visavam objetivos próprios, claramente alternativos à civilização portuguesa e à espanhola. Mas, atuando a seu pesar como agentes da civilização, por seu êxito e por seu malogro, contribuíram para que aquelas alternativas se consolidassem.

Os jesuítas criaram um desses raros modelos utópicos de reorganização intencional da vida social que efetivamente viabilizaram novas formas de existência humana.

Apesar de sua inspiração antigentílica, o modelo de estrutura social que criaram se caracterizava pelo alto sentido de responsabilidade social diante das populações indígenas que aliciavam. Ao contrário da formação colonial-escravista, que tratava o índio como um fator energético para ser desgastado na produção mercantil, o modelo jesuítico buscava assegurar-lhe uma existência própria dentro de uma comunidade que existia para si, isto é, que se ocupava fundamentalmente de sua própria subsistência e desenvolvimento.

Duas outras características distintivas teriam, porém, efeitos inesperados. Por um lado, sua eficácia destribalizadora, que permitia atrair rapidamente para os núcleos missioneiros milhares de índios. Pelo outro, sua eficácia econômica na produção de artigos para os mercados regionais e externos, que permitia às missões manter um ativo intercâmbio comercial, mediante o qual se proviam de tudo que não podiam produzir.

A concentração de grandes massas de indígenas deculturados, uniformizados culturalmente e motivados para o trabalho disciplinado teve o efeito de desencadear sobre as missões toda a fúria dos mamelucos paulistas que as viam como enorme depósito de índios facilmente preáveis. Assim se liquidaram as primeiras missões pela escravização dos catecúmenos e sua venda aos engenhos açucareiros do Nordeste.

Por outro lado, o êxito mercantil das novas missões, seu caráter de modelo alternativo à colonização em curso provocou invejas e cobiças locais e também na própria metrópole, acabando por provocar a expulsão da Companhia de Jesus. A conseqüência foi verem-se os ex-catecúmenos avassalados pelos fazendeiros que se apropriaram das antigas missões. Nas duas instâncias, as missões contribuem para a formação do Brasil sulino. Na primeira, como depósito de escravos exportáveis ou subjugáveis, com os quais se constituiu uma população subalterna local - os primeiros gaúchos - que serviria de mão-de-obra à exploração mercantil das vacarias.

Na segunda, pela apropriação por brasileiros das terras e gado do território das Missões e pela assimilação compulsória de grande parte da gente que nelas vivia.

O motor fundamental da formação do Brasil sulino foi, porém, a empresa colonial portuguesa conduzida desde muito cedo com o propósito explícito de levar sua hegemonia até o rio da Prata. Esse propósito buscado inicialmente pela operação bandeirante de conversão dos índios em mercadoria escrava, que estabeleceu o primeiro circuito mercantil transbrasileiro, corporificou-se, a seguir, com a instalação da Colônia do Sacramento no rio da Prata.

No século seguinte, o projeto português esteve seriamente ameaçado de fracasso por falta de viabilidade econômica, já que a exploração do gado selvagem para exportação de couro e de sebo, fazendo-se principalmente sob controle dos colonos das áreas de dominação espanhola, atraía os núcleos sulinos para sua órbita de influência. A ameaça foi, contudo, superada por uma nova viabilização econômica. Esta surge com a constituição do novo e rico mercado da região mineira para o gado em pé, para bois de carro, para cavalos de montaria e para muares de tração e carga.

Os índios escravos do século XVII e o gado do século XVIII, sendo ambos mercadorias que podiam transportar-se a si próprias ao mercado, por mais longínquo que fosse e através de qualquer caminho ou vereda, dariam ao extremo sul condições econômicas de vincular-se com o norte e com o centro do Brasil.

O esgotamento das minas representou um novo repto para o Brasil sulino, que se veria condenado a uma regressão pré-mercantil ou a buscar formas extrabrasileiras de viabilização econômica se não aparecessem novos modos de vinculação com outras regiões do Brasil. Estas surgem com a introdução pelos cearenses da técnica de fabrico do charque, que não apenas valoriza os rebanhos gaúchos como também os vincula ao mercado nordestino e ao amazonense e, mais tarde, ao antilhano.

A integração econômica da região Sul do Brasil se alcançou, como se vê, através da criação de sucessivos vínculos mercantis que a ataram mais ao restante do país do que às províncias hispano-americanas vizinhas. Todos esses vínculos não seriam, porém, suficientes para garantir uma verdadeira incorporação, se além deles não operassem outras forças de unificação. Entre elas se destaca, como vimos, a política portuguesa de potência, deliberada a levar sua hegemonia ao rio da Prata, tanto através da manutenção da Colônia do Sacramento, quanto pela realização do enorme esforço representado pela colonização da área com imigrantes açorianos; e por décadas de negociações diplomáticas para a fixação das fronteiras.

Contribuiu, além disso, a postura "portuguesa" dos luso-brasileiros do extremo sul frente à postura "castelhana" dos hispano-americanos enm que se defrontavam, fixando uma identifcação étnica tanto mais profunda porque permanentemente posta à prova. Esta auto identificação se vê reforçada mais ainda porque, estando associada às disputas hegemônicas das suas metrópoles, compelia cada estancieiro não só a definir-se claramente por uma ou outra como também, definida sua identidade, defender a bandeira respectiva, fazendo da estância sua trincheira.

Apesar dessas forças integrativas, mais de uma vez se teve de apelar ao uso das armas para manter o Brasil sulino atado ao Brasil. Sendo o único núcleo populacional ponderável na imensa fronteira desabitada, portugueses e castelhanos ali se defrontaram ao longo de séculos, sob fortes tensões conflitivas que periodicamente explodiam em correrias. Em função dessas tensões e das disputas que elas geravam, o Brasil se viu diversas vezes envolvido nas guerras platinas. Em certas ocasiões, movidas por ambições expansionistas próprias; em outras, como partes que eram de um conjunto de nacionalidades em confronto no processo de autodiferenciação, unificação e fixação de suas fronteiras.

voltar

Darcy Ribeiro

PREFÁCIO

Escrever este livro foi o desafio maior que me propus. Ainda é. Há mais de trinta anos eu o escrevo e reescrevo, incansável.

O pior é que me frustro quando não o faço, ocupando-me de outras empresas.

Nunca pus tanto de mim, jamais me esforcei tanto como nesse empenho, sempre postergado, de concluí-lo. Hoje o retomo pela terceira vez, isto se só conto aquela primeira vez em que o escrevi e completei, e a segunda em que o reescrevi todo, inteiro, esquecendo as inumeráveis retomadas episódicas e inconseqüentes.

Ultimamente essa angústia se aguçou porque me vi na iminência de morrer sem concluí-lo. Fugi do hospital, aqui para Maricá, para viver e também para escrevê-lo.

Se você, hoje, o tem em mãos para ler, em letras de fôrma, é porque afinal venci, fazendo-o existir. Tomara.

Acabo de ler, meio por cima, a última versão. Aquela que escrevi no Peru e que até foi traduzida em castelhano, mas que eu vetei. Era um bom livro, acho agora. Bem podia ter sido publicado tal qual era. Ou ainda é, uma vez que aí está tal e qual: desafiante. Mas eu não quis largá-lo. Pedia mais de mim, me prometia revê-lo, refazê- lo, até que alcançasse aquela forma que devia ter. Qual?

Creio que nenhum livro se completa. O autor sempre pode continuar, por um tempo indefinido, como eu continuei com esse, ao alcance da mão, sem retomá-lo. O que ocorre é que a gente se cansa do livro, apenas isto, e nesse momento o dá por concluído. Não tenho muita certeza, mas suspeito que comigo é assim.

Por que só agora o retomo, depois de tantos, tantíssimos anos, em que me ocupei das tarefas mais variadas, fugindo dele? Não sei! Não foi para descansar, certamente. Foi para me dar a outras tarefas. Entre elas, a de me fazer literato e publicar quatro romances, retomando uma linha de interesses que só me havia tentado aos vinte anos. Nessa longa travessia, também politiquei muito, com êxito e sem êxito, aqui e no exílio, e me dei a fazimentos trabalhosos, diversos. Inclusive vivi, quase morri.

Nesses anos todos, o livro, este, ficou por aí, engavetado, amarelando, esperando até hoje. Agora, estou aqui na praia de Maricá, para onde trouxe as pastas com o papelório de suas várias versões.

A primeira tentativa de escrevê-lo, que nem chegou a compaginar-se, se deu em meados da década de 50, quando eu dirigia um amplo programa de pesquisas socio- antropológicas no órgão de pesquisas do Ministério da Educação, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Eu o concebia, então, como síntese daqueles estudos, com todas as ambições de ser um retrato de corpo inteiro do Brasil, em sua feição rural e urbana, e nas versões arcaica e moderna, naquela instância que, a meu ver, era de vésperas de uma revolução social transformadora.

Eu o abandonei, então - lá se vão trinta anos -, para ocupar-me de planejar e implantar a Universidade de Brasília.

Esta tarefa me levou a outras, tais como as de ministro da Educação, de chefe do Gabinete Civil do presidente João Goulart, com a missão de concatenar o Movimento Nacional pelas Reformas de Base.

Tudo isso resultou, sabe-se, no meu primeiro exílio, no Uruguai. Lá, a primeira versão deste livro, umas quatrocentas páginas densas, tomou forma, depois de dois anos de trabalho intenso. Não era já a síntese que me propusera. Era, isto sim, a versão resultante de minhas vivências nos trágicos acontecimentos do Brasil de que havia participado como protagonista. Esse era o nervo que pulsava debaixo do texto, a busca de uma resposta histórica, científica, na organização que nos fazíamos nós, os derrotados pelo golpe militar. Por que, mais uma vez, a classe dominante nos vencia? Na verdade, para escrevê-lo, mal compulsei os livros resultantes daquelas pesquisas, que chegaram a ser publicados. Ele foi feito da leitura de quanto texto me caiu nas mãos sobre o Brasil e a América Latina. Muitíssimos, lembro-me bem, graças à magnífica Biblioteca Municipal de Montevidéu.

Uma vez completado o livro, a primeira leitura crítica que consegui fazer dele todo me assustou: não dizia nada, ou pouco dizia que não tivesse sido dito antes. O pior é que não respondia às questões que propunha, resumíveis na frase que, desde então, passei a repetir: por que o Brasil ainda não deu certo? Meu sentimento era de que nos faltava uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis em seus próprios termos, fundada em nossa experiência histórica. As teorizações oriundas de outros contextos eram todas elas eurocêntricas demais e, por isso mesmo, impotentes para nos fazer inteligíveis. Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro comum.

Atrás de respostas a essas questões, mergulhei, nos anos seguintes, em estudo e assombros. O que devia ser uma introdução teórica, no meu plano de revisão do texto, foi virando livros. A necessidade de uma teoria do Brasil, que nos situasse na história humana, me levou à ousadia de propor toda uma teoria da história. As alternativas que se ofereciam eram impotentes.

Serviriam, talvez, como uma versão teórica do desempenho europeu, mas não explicavam a história dos povos orientais, nem o mundo árabe e muito menos a nós, latino-americanos. A melhor delas, representada pela nova versão compilada por Engels, nas Origens, e por Marx, nas Formações, opondo-se uma à outra, deixavam o tema em aberto.

O processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida, quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito ocidental, editada e reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais nos Estados Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever um livro tão ambicioso me custou algum despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade, que não admitem a um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates, tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições, também, dos comunistas, porque não era um livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso não fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer outro livro recente sobre o mesmo tema.

Mas o Processo não bastava. A explicação que oferece para 10 mil anos de história é ampla demais. Suas respostas, necessariamente genéricas, apenas dão tênues delineamentos do nosso desempenho histórico. Era o que podia dar como alternativa aos textos clássicos, com que geralmente se trabalhava esse tema. Um esquema conceitual mais verossímil e mais explicativo do que os disponíveis, através da proposição de novas revoluções tecnológicas como motores da história, de novos processos civilizatórios e de novas formações socioculturais. Vista sob essa luz, a nossa realidade se retrata em seus traços mais gerais, resultando num discurso explicativo útil para fins teóricos e comparativos, mas insuficiente para dar conta da causalidade da nossa história.

Saí, então, em busca de explicações mais terra-a-terra, em mais anos de trabalho. O tema que me propunha agora era reconstituir o processo de formação dos povos americanos, num esforço para explicar as causas do seu desenvolvimento desigual. Salto, assim, da escala de 10 mil anos de história geral para os quinhentos anos da história americana com um novo livro: As Américas e a civilização, em que proponho uma tipologia dos povos americanos, na forma de uma ampla explanação explicativa.

Esse meu livro anda aí, desde então, sendo traduzido, reeditado e discutido, mais por historiadores e filósofos do que por antropólogos. Esses meus colegas têm um irresistível pendor barbarológico e um apego a toda conduta desviante e bizarra.

Dedicam seu parco talento a quanto tema bizarro lhes caia em mãos, negando-se sempre, aparvalhados, a usar suas forças para entender a nós mesmos, fazendo antropologias da civilização.

Ocorre, porém, uma vez mais, que, completada a tarefa, vejo os limites daquilo que alcancei em relação ao que buscava.

Meu livro ajuda, é certo, a nos fazer inteligíveis, mas é claramente insuficiente para nossas ambições. Mergulho outra vez buscando, numa escala nova, sincrônica, as teorias de que necessitávamos para nos compreender. Eram três as mais urgentemente requeridas para tomar o lugar dos esquemas menos eurocêntricos do que toscos com que se contava.

Uma teoria de base empírica das classes sociais, tais como elas se apresentam no nosso mundo brasileiro e latino-americano. Visivelmente, o esquema marxista aceito, sem demasiados reparos, no mundo europeu e no anglo-saxão de ultramar, feito de povos transplantados, empalidece frente à nossa realidade ibero-latina. Aqui, não havendo burguesias progressistas disputando com aristocracias feudais, nem proletariados ungidos por irresistíveis propensões revolucionárias, mas havendo lutas de classe, existiriam blocos antagonistas embuçados a identificar e caracterizar.

Nos faltava, por igual, uma tipologia das formas de exercício do poder e de militância política, seja conservadora, seja reordenadora ou insurgente. Toda politicologia copiosíssima de que se dispõe é feita de análises irrelevantes ou de especulações filosofantes que nos deixam mais perplexos do que explicados.

Efetivamente, falar de liberais, conservadores, radicais, ou de democracia e liberalismo e até revolução social e política pode ter sentido de definição concreta em outros contextos; no nosso não significa nada, tal a ambigüidade com que essas expressões se aplicam aos agentes mais diferentes e às orientações mais desconexas.

Faltava ainda uma teoria da cultura, capaz de dar conta da nossa realidade, em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não-saber popular alcança, contrastantemente, atitudes críticas, mobilizando consciências para movimentos profundos de reordenação social. Como estabelecer a forma e o papel da nossa cultura erudita, feita de transplante, regida pelo modismo europeu, frente à criatividade popular, que mescla as tradições mais díspares para compreender essa nossa nova versão do mundo e de nós mesmos? Para dar conta dessa necessidade é que escrevi O Dilema da América Latina. Ali, proponho novos esquemas das classes sociais, dos desempenhos políticos, situando-os debaixo da pressão hegemônica norte-americana em que existimos, sem nos ser, para sermos o que lhes convém a eles.

Num exercício puramente didático, resumi os corpos teóricos desenvolvidos nesses três livros, para compor Os brasileiros: Teoria do Brasil. Ele só traz de novo a teoria da cultura a que aludi. Não a situei no Dilema, para não ter que tratar tema tão copioso dentro da dimensão latino-americana.

Os índios e a civilização compõe, com os quatro livros citados, meus Estudos de Antropologia da Civilização, ainda que resultasse de uma pesquisa realizada anteriormente. O certo, porém, é que seu corpo teórico é o mesmo, fundado no conceito de transfiguração étnica. Vale dizer, o processo através do qual os povos surgem, se transformam ou morrem.

Ocupado nessas escrituras "preliminares", que resultaram em cinco volumes de quase 2 mil páginas, descuidei desse livro que agora retomo. Efetivamente, todos eles são fruto da busca de fundamentos teóricos que, tornando o Brasil explicável, me permitissem escrever o livro que tenho em mãos.

Foi o que tentei várias vezes no Peru, conforme dizia, chegando a redigi-lo inteiro, já com base nos meus estudos teóricos. Não me satisfazendo a forma que alcancei anos atrás, o pus de lado, cuidando que, com uns meses a mais, o retomaria.

Não foi assim. Desencadeou-se sobre mim o vendaval da vida. Um câncer me comia um pulmão inteiro e tive de retirá-lo. Para tanto, retornei ao Brasil, reativando as candentes luzes políticas que dormiam em mim nos anos de exílio. Tudo isso e, mais que tudo, uma compulsiva pulsão romanesca que me deu, irresistível, assim que me soube mortal e que, desde então, me escraviza, afastando-me da tarefa que me propunha.

Agora, uma nova pulsão, mortal, reaviva a necessidade de publicar este livro que, além de um texto antropológico explicativo, é, e quer ser, um gesto meu na nova luta por um Brasil decente.

Portanto, não se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo. Não procure, aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser participante, que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo.

INTRODUÇÃO

O Brasil e os brasileiros, sua gestação como povo, é o que trataremos de reconstituir e compreender nos capítulos seguintes. Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos.

Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros.

Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.

A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes da versão lusitana da tradição civilizatória européia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos e dos negros africanos. O Brasil emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado de características próprias, mas atado genesicamente à matriz portuguesa, cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer só aqui se realizariam plenamente.

A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação.

As únicas exceções são algumas microetnias tribais que sobreviveram como ilhas, cercadas pela população brasileira. Ou que, vivendo' para além das fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São tão pequenas, porém, que qualquer que seja seu destino, já não podem afetar à macroetnia em que estão contidas.

O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes indígenas e africanas; da proporção particular em que elas se congregaram no Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos objetivos de produção que as engajou e reuniu.

Essa unidade étnica básica não significa, porém, nenhuma uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela três forças diversificadoras. A ecológica, fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condições de meio ambiente obrigaram a adaptações regionais. A econômica, criando formas diferenciadas de produção, que conduziram a especializações funcionais e aos seus correspondentes gêneros de vida.

E, por último, a imigração, que introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos, principalmente europeus, árabes e japoneses. Mas já o encontrando formado e capaz de absorvê-los e abrasileirá-los, apenas estrangeirou alguns brasileiros ao gerar diferenciações nas áreas ou nos estratos sociais onde os imigrantes mais se concentraram.

Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc.

Todos eles muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população.

A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos culturais.

Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região, os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas.

Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades multiétnicas regidas por Estados unitários e, por isso mesmo, dilaceradas por conflitos interétnicos, os brasileiros se integram em uma única etnia nacional, constituindo assim um só povo incorporado em uma nação unificada, num Estado uni-étnico. A única exceção são as múltiplas microetnias tribais, tão imponderáveis que sua existência não afeta o destino nacional.

Aquela uniformidade cultural e esta unidade nacional - que são, sem dúvida, a grande resultante do processo de formação do povo brasileiro - não devem cegar-nos, entretanto, para disparidades, contradições e antagonismos que subsistem debaixo delas como fatores dinâmicos da maior importância. A unidade nacional, viabilizada pela integração econômica sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, de fato, depois da independência, como um objetivo expresso, alcançado através de lutas cruentas e da sabedoria política de muitas gerações. Esse é, sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco unitário resultante da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária importância desse feito.

Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista.

Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade mais aberta e solidária. A luta pela unificação potencializa e reforça, nessas condições, a repressão social e classista, castigando como separatistas movimentos que eram meramente republicanos ou antioligárquicos.

Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais.

O povo-nação não surge no Brasil da evolução de formas anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se estruturam em classes opostas, mas se conjugam para atender às suas necessidades de sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável.

Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Em conseqüência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse pavor pânico é a brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente. A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural. A façanha que representou o processo de fusão racial e cultural é negada, desse modo, no nível aparentemente mais fluido das relações sociais, opondo à unidade de um denominador cultural comum, com que se identifica um povo de 160 milhões de habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber.

O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, "democracia racial", raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais.

O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis.

Essa alternidade só se potencializou dinamicamente nas lutas seculares dos índios e dos negros contra a escravidão.

Depois, somente nas raras instâncias em que o povo-massa de uma região se organiza na luta por um projeto próprio e alternativo de estruturação social, como ocorreu com os Cabanos, em Canudos, no Contestado e entre os Mucker.

Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pela exacerbação do preconceito classista e pela consciência emergente da injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a preocupação obsessiva que tiveram as classes dominantes pela manutenção da ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem muito bem que isso pode suceder, caso se abram as válvulas de contenção. Daí suas "revoluções preventivas", conducentes a ditaduras vistas como um mal menor que qualquer remendo na ordem vigente.

É de assinalar que essa preocupação se assentava, primeiro, no medo da rebeldia dos escravos. Dada a coloração escura das camadas mais pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais que ameaçam eclodir com violência assustadora. Efetivamente, poderá assumir a forma de convulsão social terrível, porque, com uma explosão emocional, acabaria provavelmente vencida e esmagada por forças repressoras, que restaurariam, sobre os escombros, a velha ordem desigualitária.

O grande desafio que o Brasil enfrenta é alcançar a necessária lucidez para concatenar essas energias e orientá-las politicamente, com clara consciência dos riscos de retrocessos e das possibilidades de liberação que elas ensejam. O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e opressão em que vive e peleja. Nessas lutas, índios foram dizimados e negros foram chacinados aos milhões, sempre vencidos e integrados nos plantéis de escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas de milhares, foi também sangrado em contra-revoluções sem conseguir jamais, senão episodicamente, conquistar o comando de seu destino para reorientar o curso da história. Ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma fundamental da construção da história. O que faltou, sempre, foi espaço para movimentos sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias.

Não é impensável que a reordenação social se faça sem convulsão social, por via de um reformismo democrático. Mas ela é muitíssimo improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes dominantes apelam para a repressão e a força.

Este livro é um esforço para contribuir ao atendimento desse reclamo de lucidez.

Isso é o que tentei fazer a seguir. Primeiro, pela análise do processo de gestação étnica que deu nascimento aos núcleos originais que, multiplicados, vieram a formar o povo brasileiro. Depois, pelo estudo das linhas de diversificação que plasmaram os nossos modos regionais de ser. E, finalmente, por via da crítica do sistema institucional, notadamente a propriedade fundiária e o regime de trabalho - no âmbito do qual o povo brasileiro surgiu e cresceu, constrangido e deformado.

I. O NOVO MUNDO

1 MATRIZES ÉTNICAS A ILHA BRASIL

A costa atlântica, ao longo dos milênios, foi percorrida e ocupada por inumeráveis povos indígenas. Disputando os melhores nichos ecológicos, eles se alojavam, desalojavam e realojavam, incessantemente. Nos últimos séculos, porém, índios de fala tupi, bons guerreiros, se instalaram, dominadores, na imensidade da área, tanto à beira-mar, ao longo de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, até suas nascentes.

Configuraram, desse modo, a ilha Brasil, de que falava o velho Jaime Cortesão ( 1958), prefigurando, no chão da América do Sul, o que viria a ser nosso país. Não era, obviamente, uma nação, porque eles não se sabiam tantos nem tão dominadores.

Eram, tão-só, uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se desconheciam e se hostilizavam.

Se a história, acaso, desse a esses povos Tupi uns séculos mais de liberdade e autonomia, é possível que alguns deles se sobrepusessem aos outros, criando chefaturas sobre territórios cada vez mais amplos e forçando os povos que neles viviam a servi-los, os uniformizando culturalmente e desencadeando, assim, um processo oposto ao de expansão por diferenciação.

Nada disso sucedeu. O que aconteceu, e mudou total e radicalmente seu destino, foi a introdução no seu mundo de um protagonista novo, o europeu. Embora minúsculo, o grupelho recém-chegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas. Principalmente como uma infecção mortal sobre a população preexistente, debilitando-a até a morte.

Esse conflito se dá em todos os níveis, predominantemente no biótico, como uma guerra bacteriológica travada pelas pestes que o branco trazia no corpo e eram mortais para as populações indenes. No ecológico, pela disputa do território, de suas matas e riquezas para outros usos. No econômico e social, pela escravização do índio, pela mercantilização das relações de produção, que articulou os novos mundos ao velho mundo europeu como provedores de gêneros exóticos, cativos e ouros.

No plano étnico-cultural, essa transfiguração se dá pela gestação de uma etnia nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construído com os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas.

Reconstituir esse processo, entendê-lo em toda a sua complexidade, é meu objetivo neste livro. Parece impossível, reconheço. Impossível porque só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. Ele é quem nos fala de suas façanhas. É ele, também, quem relata o que sucedeu aos índios e aos negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas. O que a documentação copiosíssima nos conta é a versão do dominador. Lendo-a criticamente, é que me esforçarei para alcançar a necessária compreensão dessa desventurada aventura.

Tarefa relevantíssima, em dois planos. No histórico, pela reconstituição da linha singular e única de sucessos através dos quais chegamos a ser o que somos, nós, os brasileiros. No antropológico, porque o processo geral de gestação de povos que nos fez, documentadíssimo aqui, é o mesmo que fez surgir em outras eras e circunstâncias muitos outros povos, como a romanização dos portugueses e dos franceses, por exemplo, de cujo processo de fazimento só temos notícias escassas e duvidosas.

A MATRIZ TUPI

Os grupos indígenas encontrados no litoral pelo português eram principalmente tribos de tronco tupi que, havendo se instalado uns séculos antes, ainda estavam desalojando antigos ocupantes oriundos de outras matrizes culturais. Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes (Fernandes 1949 ). Não era pouca gente, porque Portugal àquela época teria a mesma população ou pouco mais.

Na escala da evolução cultural, os povos Tupi davam os primeiros passos da revolução agrícola, superando assim a condição paleolítica, tal como ocorrera pela primeira vez, há 10 mil anos, com os povos do velho mundo. É de assinalar que eles o faziam por um caminho próprio, juntamente com outros povos da floresta tropical que haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condição selvagem para a de mantimento de seus roçados. Entre elas, a mandioca, o que constituiu uma façanha extraordinária, porque se tratava de uma planta venenosa a qual eles deviam, não apenas cultivar, mas também tratar adequadamente para extrair-lhe o ácido cianídrico, tornando-a comestível. É uma planta preciosíssima porque não precisa ser colhida e estocada, mantendo-se viva na terra por meses.

Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas. Inclusive dezenas de árvores frutíferas, como o caju, o pequi etc. Faziam, para isso, grandes roçados na mata, derrubando as árvores com seus machados de pedra e limpando o terreno com queimadas.

A agricultura lhes assegurava fartura alimentar durante todo o ano e uma grande variedade de matérias-primas, condimentos, venenos e estimulantes. Desse modo, superavam a situação de carência alimentar a que estão sujeitos os povos pré- agrícolas, dependentes da generosidade da natureza tropical, que provê, com fartura, frutos, cocos e tubérculos durante uma parte do ano e, na outra, condena a população à penúria. Permaneciam, porém, dependentes do acaso para obter outros alimentos através da caça e da pesca, também sujeitos a uma estacionalidade marcada por meses de enorme abundância e meses de escassez (Ribeiro 1970; Meggers 1971 ).

Daí a importância dos sítios privilegiados, onde a caça e a pesca abundantes garantiam com maior regularidade a sobrevivência do grupo e permitiam manter aldeamentos maiores. Em certos locais especialmente ricos, tanto na costa marítima quanto nos vales mais fecundos, esses aldeamentos excepcionais chegavam a alcançar 3 mil pessoas. Eram, todavia, conglomerados pré-urbanos (aldeias agrícolas indiferenciadas), porque todos os moradores estavam compelidos à produção de alimentos, só liberando dela, excepcionalmente, alguns líderes religiosos (pajés e caraibas) e uns poucos chefes guerreiros (tuxáuas).

Apesar da unidade lingüística e cultural que permite classificá-los numa só macroetnia, oposta globalmente aos outros povos designados pelos portugueses como tapuias (ou inimigos), os índios do tronco tupi não puderam jamais unificar-se numa organização política que lhes permitisse atuar conjugadamente.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por contribuir com sua informação